sábado, 2 de janeiro de 2021

"2020, o ano que não começou", por Guilherme Fiuza

 

Foto: BigStock


Éramos muito inocentes no final de 2019. Achávamos que 2020 seria mais um ano de tentativas de sabotagem contra a agenda de reconstrução do Brasil – com aquele persistente número da resistência cenográfica contra o fascismo imaginário. A inocência acabou rapidinho com o raiar do fascismo sanitário – esse muito real e assustador, mas muito bem recebido pelos antifascistas.


Como fazer a retrospectiva de um ano que nem começou, barrado na entrada pela Seita da Terra Parada? O certo seria dizer ao prezado Sr. 2020: nada de retrospectiva. Volta ao início e faz o seu trabalho direito. Incluindo o ano letivo, roubado na mão grande pelos fiquemcasistas. Mas não adiantaria. Com toda certeza algum advogado de réu da Lava Jato entraria com um habeas corpus no STF e 2020 seria liberado na hora.


Sendo assim, vamos nos conformar e captar aleatoriamente no retrovisor cinco cenas desse ano bastardo – e se elas te parecerem surrealistas é sinal de que você ainda não perdeu o juízo por completo.


Após um mês dizendo todos os dias na televisão, em coletivas com horas de duração, que o isolamento total era a única salvação possível, o ministro da Saúde Henrique Mandetta deixa o cargo se abraçando, se beijando, cantando e dançando com assessores sem máscara em ambiente aglomerado. À luz da ciência, esse é o teste clínico sem “l” – realizado por meio de contraste entre hipócritas e trouxas. Deu positivo para ambos;

Seguindo os rigorosos protocolos da infectologia circense, o mesmo Mandetta repetiu o teste meses depois – dizendo para todo mundo se isolar enclausurado enquanto ele ia jogar uma sinuquinha sem máscara no boteco, que ninguém é de ferro. O teste foi um sucesso, confirmando o duplo positivo para hipócritas e trouxas – e comprovando tecnicamente que você pode ser um charlatão zombando da cara do povo sem pagar nada por isso se tiver a cobertura dos holofotes certos;

Sergio Moro, o herói da Lava Jato, mergulhou com tudo na ciência transformista de Henrique Mandetta e abandonou o cargo de ministro da Justiça no auge da crise. Foi um ato coerente, porque a dupla estava desempenhando o papel inovador de “ministros de oposição” – usando a pandemia para fazer política contra o governo ao qual serviam. Depois de assinar embaixo do lockdown totalitário e burro de Mandetta, Moro montou um circo para sair também – atirando e acusando o presidente da República de complacência com a corrupção. O ano de 2020 termina sem que as acusações graves de Sergio Moro tenham sido provadas, mas ele continua à vontade no seu novo personagem de surfista de tragédia;

Depois da saída ruidosa de Sergio Moro, indignado ao constatar que o governo não tinha caído, o governador de São Paulo, João Dória, telefonou para o ministro da Economia, Paulo Guedes, com um convite de elevado espírito público para que Guedes abandonasse o barco também. Não era possível que as coisas continuassem não dando certo no Brasil, nem mesmo um naufrágio tão bem planejado. Paulo Guedes agradeceu o patriotismo de João Dória, mas disse que não ia largar o leme numa hora daquelas. Ou seja: não se pode confiar em mais ninguém nem para uma traição honesta, perfumada e fundamentada na ciência;

Depois de mandar São Paulo voltar para o lockdown, João Dória viajou para passar as festas de fim de ano em Miami, onde não há lockdown. João Dória é o mesmo que quer vacinação obrigatória de toda a população afirmando que esta é a única chance de se voltar a viver em sociedade. Só está imune quem tem avião particular para pousar sob as palmeiras certas, para se aglomerar nas festas certas e cara de pau suficiente para se fantasiar de herói da vacina chinesa.

Saiu o habeas corpus do STF em favor do ano de 2020 – liberando-o de começar de novo. O jeito é encarar 2021 mesmo. Mas, atenção: ele só será uma bad trip surrealista conforme a retrospectiva acima se você permitir.


Gazeta do Povo