sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Quem vai mandar na Lava Jato?", por Silvio Navarro

Coordenador e símbolo da operação que mudou o Brasil, o procurador Deltan Dallagnol deixa a força-tarefa, que muda de mãos e terá mais influência de Brasília


No final de 2015, quando milhares de brasileiros comemoravam nas ruas a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, na esteira de uma onda de manifestações em defesa de uma faxina política no país, um enorme cartaz foi estendido sobre as vidraças do pomposo edifício da Procuradoria-Geral da República em Brasília. 

“#CorrupçãoNão”, dizia a faixa, em alusão ao lançamento do site www.combateacorrupcao.mpf.mp.br, por meio do qual os cidadãos passaram a poder registrar denúncias, ter acesso a ferramentas de controle de gastos públicos e revisitar casos como Banestado, Sanguessugas e Mensalão, que retratam um velho Brasil.

Além do processo em curso contra a presidente petista na Câmara dos Deputados, o país também convivia com a euforia de uma operação do Ministério Público de Curitiba (PR) que parecia varrer um a um políticos, empreiteiros e operadores que sangraram os cofres públicos durante décadas. A Lava Jato não só destronou essa quadrilha como continuou levando multidões às ruas em defesa do fim da corrupção.

Eram outros tempos. Passados seis anos e 72 fases do início da operação, ela parece arrefecer a passos largos. Na avaliação de integrantes do próprio Ministério Público e de alguns advogados, a saída nesta semana do procurador Deltan Dallagnol, que liderava a força-tarefa, pode ser a resposta definitiva à pergunta que muitos fazem até hoje: a Lava Jato terá um fim?

“Deltan honrou o Estado do Paraná permitindo que pudéssemos assumir uma posição de destaque no combate à corrupção, o que muito nos orgulha”, afirmou a procuradora-chefe do MPF no Paraná, Paula Cristina Conti Thá.

Pressionado por quase duas dezenas de representações que questionam sua atuação no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Dallagnol vinculou sua decisão à necessidade de cuidar do tratamento médico da filha, o que é um motivo indiscutível. A escolha do seu sucessor, Alessandro José Fernandes de Oliveira, contudo, deixa dúvidas sobre o controle das investigações. 

Oliveira integra o grupo do Ministério Público que orbita ao redor do procurador-geral da República, Augusto Aras, e da procuradora Lindôra Maria Araújo. É um especialista nas chamadas delações premiadas — como a do ex-dirigente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, amigo do ex-presidente Lula. 

Caberá a Aras dar a palavra final sobre renovar ou não o tempo de trabalho da força-tarefa de Curitiba — que expira no próximo dia 10 de setembro.

No mesmo dia, a subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos, do Conselho Superior do Ministério Público Federal, pediu a extensão da operação por mais um ano. A decisão foi monocrática, sem o aval do Conselho Superior. O argumento do grupo favorável à continuidade é que há acordos de leniência e cooperação em curso que podem resultar em R$ 3 bilhões.

Movimentos sociais e grupos de procuradores apontam riscos para o futuro da operação

Nos bastidores de Brasília, a aposta é que Aras deve esticar a permanência do grupo de trabalho na semana que vem, até que tome corpo a proposta de criação da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (Unac), um órgão que unificaria as forças-tarefas, subordinado à Brasília — o que poderia resultar em perda de autonomia de equipes como a que atua há seis anos em Curitiba.

“Não acredito que haja algo orquestrado nesse sentido, seja por pessoas, por instituições e muito menos por autoridades”, disse Alessandro Oliveira em entrevista à CNN.

A opinião de milhares de pessoas nas redes sociais e de alguns movimentos que foram às ruas no passado é diferente. O Vem Pra Rua, conhecido por ser “lava-jatista”, organizou carreatas em 20 cidades para o próximo domingo, 6. “O movimento não poderia assistir inerte às seguidas tentativas de desmonte da operação, que vêm ocorrendo sistematicamente, seja por parte de ações do Ministério Público e do ministro da Justiça, seja por perseguição e campanhas regulares de difamação dirigidas aos principais atores da operação”, diz o ato de convocação.

Outra reação foi o pedido de demissão coletiva de sete procuradores da Lava Jato que atuam em São Paulo. Em ofício endereçado ao procurador-geral da República, apontaram “incompatibilidades insolúveis com a atuação da procuradora natural dos feitos da referida força-tarefa, dra. Viviane de Oliveira Martinez”, indicada por Aras.

Também argumentaram em documento encaminhado ao Conselho Superior do Ministério Público Federal que Martinez “não teve qualquer iniciativa no sentido de chamar reuniões para compreender quais as linhas de investigação que vinham sendo conduzidas […] e que, não bastassem essas omissões, em dado momento a atual titular do 5º ofício passou a adotar ações que, na prática, foram criando obstáculos ao trabalho que vinha sendo desenvolvido”.

Embate entre Brasília e Curitiba — nomes graúdos no meio da crise

A troca de guarda na matriz da Lava Jato ocorre num cenário de embate entre a equipe que Dallagnol chefiava e o time de Aras. O estopim da crise foi o envio de uma diligência de Brasília para buscar informações colhidas no Paraná, procedimento autorizado pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, depois revisto pelo relator da Lava Jato na Corte, Edson Fachin. No ofício, a Procuradoria-Geral da República justificava o acesso aos documentos “com o objetivo de obter as bases de dados estruturados e não estruturados utilizadas”.

A canetada de Toffoli, com a chancela de Aras, jogou luz sobre suspeitas de que os procuradores poderiam ter rastreado informações incômodas aos integrantes do STF ou aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ambos citados na lista de codinomes das empreiteiras corruptas, porém detentores do chamado foro privilegiado.

“A situação já estava difícil fazia muito tempo, com diversas decisões negativas à operação no STF. E o procurador-geral piorou essa situação. Os poderosos não têm interesse na manutenção da Lava Jato”, afirma uma ex-integrante da força-tarefa.

O anúncio de Dallagnol, aliás, teve enorme repercussão nas redes sociais — com uma série de manifestações de apoio por sua atuação e também festejos pela saída. Sobre o legado da maior ação anticorrupção da história, os números apresentados a seguir falam por si sós. Sobre os críticos, basta uma rápida olhada na trajetória política de quem comemorou.

Fachada da Procuradoria-Geral da República em 2015 I Foto: Leonardo Prado/Secom/PGR

Leia também sobre a Lava Jato a reportagem “A operação que mostrou que todos são iguais perante a lei”

Revista Oeste