O que é um bom governo? A humanidade discute isso há alguns milênios e provavelmente nenhum estudioso do poder conseguiu até hoje derrubar a requintada e amoral frieza de Nicolau Maquiavel.
Numa das mais repetidas análises sobre os problemas que o governante enfrenta diante da necessidade de mudanças complexas – seja trocar o regime, sair da União Europeia ou implantar uma reforma da previdência, estes dois últimos exemplos gritantes do momento -, ele resumiu magnificamente os obstáculos criados pela inércia natural do sistema.
“Nada mais difícil de manejar, mais perigoso de conduzir ou de sucesso mais incerto do que liderar a introdução de uma nova ordem de coisas. O reformador tem contra si todos os que se beneficiavam das antigas condições e apoio apenas tíbio dos que se beneficiarão da nova ordem.”
Exasperado, um ministro do gabinete de Theresa May usou de linguagem bem menos elegante para definir como a primeira-ministra falhou em todas as instâncias, já naturalmente difíceis, em que deveria ter sido um exemplo de liderança.
“Ninguém sabe mais ***** nenhuma”, respondeu o ministro a um jornalista que perguntou por que ela estava levando a votação, mais uma vez, sua proposta para o Brexit, sabendo que não passaria. “Isso aqui está parecendo os mortos vivos.”
“Theresa May é a única arquiteta dessa bagunça. Sua incapacidade de engajamento nas interações humanas mais elementares nos trouxe até isso. O gabinete não funciona mais.”
“Um lado acha que vai acontecer X, outro lado acha que vai acontecer Y e ela toma decisões sobre Z.”
Um governo de mortos vivos liderado por uma pessoa sem vasos comunicantes com a realidade é uma definição imbatível de fracasso.
Isso que não estamos falando da Venezuela, o mais espantoso exemplo de falência sistêmica num país sem guerra civil, conflito étnico, catástrofe telúrica ou invasão estrangeira.
Se formos de um exemplo tosco como a Venezuela até a situação complicada de um lugar de alta sofisticação política como a Grã-Bretanha, talvez os requisitos de um bom governo possam ser simplificados em dois itens.
Número um, entregar ao sucessor um país melhor do que pegou (e que a alternância de poder seja cláusula pétrea da sucessão, o que sempre vale lembrar no caso de países com déficit democrático). Número dois, conseguir algo mais do que “apoio apenas tíbio” a mudanças obrigatórias.
Eleições em diferentes países vão indicar nos próximos meses quem está fazendo governos ruins e quem conseguirá passar no teste da urna.
Um dos mais próximos e dolorosos exemplos de governo ruim é o de Mauricio Macri na Argentina. Ele recebeu uma bomba nuclear de Cristina Kirchner e teve que fazer escolhas difíceis.
Com imagem de renovador, entendimento dos problemas fundamentais da economia e traquejo no circuito internacional que só um bilionário de berço conseguiria, conduziu mal o processo.
“Uma coisa é saber como ganhar uma eleição e outra como se governa”, analisou Horacio Jaunarena, um veteraníssimo ministro da época de Raúl Alfonsín. “Ele não pode ou não soube construir a massa crítica de apoio político necessário.”
E ponha-se crítica nessa massa. A inflação aumentou (160%), o dólar explodiu, o PIB caiu mais de 15% e todo mundo ficou mais pobre. Principalmente, claro, os mais pobres: passaram de 29% para 32%.
É difícil que a situação melhore até o segundo turno da eleição presidencial, em 24 de novembro, principalmente num país como a Argentina, onde tudo o que pode piorar, piora espetacularmente.
E existe o risco nada desprezível de que tenha que fazer aquilo a que Cristina indecentemente se recusou: entregar a faixa e o bastão a uma ex-presidente com oito processos por corrupção e cinco pedidos de prisão, aos quais está blindada pela imunidade como senadora.
No primeiro turno, segundo pesquisas, ela já teria alguns pontos a mais do que ele. Isso, claro, se for candidata, vencendo a oposição interna entre os peronistas desconfiados de que o ódio a Cristina seja um pouco maior do que a profunda desilusão com Macri.
O desprestígio de presidentes sul-americanos relativamente recentes é um fenômeno generalizado.
Iván Duque é o presidente em início de governo mais impopular da Colômbia nos últimos vinte anos. Sebastián Piñera está com 37% de aprovação e 50% de desaprovação dos chilenos.
Lenín Moreno, que deu uma guinada antibolivariana no Equador, está pior ainda: tinha 65% de aprovação no primeiro ano de governo, despencou para 27%.
Na maior, e mais complicada, democracia do mundo, 900 milhões de indianos votarão entre 11 de abril e 19 de maio. O primeiro-ministro Narendra Modi tem uma garantia razoável de reeleição e um número incontestável para sustentá-la: 8,2% de crescimento do PIB no ano fiscal iniciado em agosto passado.
Todas as catástrofes que foram anunciadas com o desempenho surpreendentemente forte de seu partido em 2014 não se realizaram. O partido é de uma linha ultranacionalista hinduísta, um problema em potencial para um país como a Índia, com histórico de conflitos violentos de minorias religiosas como os muçulmanos e os sikhs.
Até agora, Modi conseguiu escapar das maldições do sectarismo, embora não tenha sido nada ruim para sua popularidade os bombardeios de retaliação algo vagos em território do Paquistão, vizinho-inimigo de onde partiu um ataque jihadista na Caxemira.
Ao mesmo tempo, aperfeiçoou a máquina de propaganda populista para criar uma imagem de “tio guru” bonzinho. Seu principal adversário, Rahul Gandhi, filho, neto e bisneto da famosa dinastia de primeiros-ministros, sentiu o cheiro populista e prometeu uma renda mínima de 1 000 dólares por ano aos extratos mais miseráveis da população rural.
Outra eleição, a para o Parlamento Europeu, em 26 de maio, é amplamente considerada um indicador de popularidade do governo francês.
Protagonista de um dos maiores tombos de popularidade da história, o presidente Emmanuel Macron tem conseguido alguma recuperação, em especial pelo desprestígio dos coletes-amarelos, o movimento de protesto que descambou para o quebra-quebra.
Mesmo assim, o partido dele, República em Marcha, continua muito embolado com a Coligação Nacional, o novo nome da turma de Marine Le Pen.
Por motivos autoexplicáveis, os Estados Unidos são o caso mais contraditório e interessante. Na média das pesquisas, Donald Trump continua a passar de 40% de aprovação (a última, deu 43,6%).
Em quesitos separados, como a situação econômica do país, mais de 70% dos americanos dizem que está melhor e que o principal responsável é Trump.
Os especialistas consideravam impossível, mas Trump não é da turma e incentivou o crescimento econômico com desregulamentação e corte de impostos para empresas.
Liberou o espírito animal do capitalismo com iniciativas reais e não invocações da boca para fora, como uma certa ex-presidenta de um certo país ainda mergulhado nas barbaridades que um dos piores governos da história política recente.
Os indicadores de Trump são até invejáveis, principalmente para um presidente de estilo inccontrolável e confrontado com uma muralha unânime de rejeição do establishment, inexpugnável até ao recente resultado da investigação especial que o exime de conspiração com os russos.
Mas em vários estados-chave, aqueles que mudam de posição dependendo do momento eleitoral, Trump aparece atrás dos principais pré-candidatos democratas.
Dá para cravar que isso indica uma derrota em 2020? Nem pensar.
Entre hoje e amanhã, e talvez nos dias seguintes, Theresa May vai ter mais oportunidades de comprovar sua incompetência, como se já não tivesse feito isso em doses suficientes.
Quase metade de seu gabinete pode renunciar se for aprovada uma versão light do Brexit, que na prática deixa a Grã-Bretanha atrelada ao mercado comum europeu, sem possibilidade de fazer acordos comerciais à parte.
E a outra metade renuncia na hipótese contrária, de um Brexit sem acordo, na marra.
Ah, que falta faz um Maquiavel numa hora dessas. Nem que fosse só para concluir: “Um príncipe que não é sábio por si mesmo, não pode ser sabiamente aconselhado.”
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