Bruno Rosa e Ramona Ordoñez - O Globo
A euforia da indústria naval no Brasil durou pouco. O setor, que há cinco anos comemorava encomendas bilionárias, hoje sofre com a falta de novos projetos. Nos 36 estaleiros em funcionamento no Brasil, não há construções novas no horizonte, o que está levando muitas empresas a fecharem as portas. Entre as que se mantêm em operação, o trabalho se restringe à conclusão de projetos antigos, e a saída tem sido buscar outras opções de negócios, como o segmento de reparo de embarcações. O marasmo no setor é resultado da combinação entre a crise na Petrobras, decorrente dos escândalos de corrupção e da queda nos preços do petróleo, e da derrocada da Sete Brasil, empresa criada para intermediar a construção de sondas do pré-sal.
Quase 45 mil demitidos em pouco mais de um ano
O cenário de crise se reflete em demissões. Do fim de 2014 até fevereiro deste ano, quase 45 mil trabalhadores perderam seus empregos. O número, de acordo com o Sinaval, associação que reúne as companhias do setor, passou de 82.472 para 37.747, uma redução de 54%. Nem no auge o setor alcançou as previsões de 2011 — de cem mil vagas —, quando a política de conteúdo nacional ganhava força e prometia dar novo impulso a uma indústria que foi à bancarrota nos anos 1980.
Mas o fundo do poço pode não ter chegado, dizem empresários e especialistas. O temor é que um fracasso no processo de recuperação judicial da Sete Brasil — um projeto de US$ 27 bilhões entre encomendas e investimento do setor — possa dar fim aos 20 mil empregos existentes ao longo da cadeia de fornecedores. E enterrar de vez os novos estaleiros, voltados para a fabricação de sondas, como o Enseada Paraguaçu, em Maragogipe, na Bahia, que já demitiu 7.275 trabalhadores. Situação semelhante ocorre com o Jurong Aracruz, no Espírito Santo, que está em construção, além do Brasfels, em Angra dos Reis, que cortou cinco mil, e do estaleiro Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Sem receber recursos desde 2014, estes empreendimentos vivem hoje em compasso de espera.
Edson Rocha, coordenador da Confederação Nacional dos Metalúrgicos e membro do Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante, diz que o cenário é reflexo da paralisação do setor de óleo e gás e de problemas de gestão:
— Muitos estaleiros tiveram problemas comerciais e não conseguiram dar continuidade às obras. Mas a paralisia no setor afetou a todos. A Transpetro (subsidiária da Petrobras) reduziu suas encomendas de 49 embarcações para 24, afetando estaleiros médios. A Sete Brasil não paga aos estaleiros, de grande porte, porque não consegue assinar os contratos com a Petrobras, que pisou no freio, reduzindo as encomendas de barcos de apoio. O ambiente político atrapalha tudo, e quem paga é o trabalhador.
O Sinaval critica a falta de continuidade dos projetos no Brasil. “A redução dos investimentos da Petrobras representa um menor número de campos de produtores a serem desenvolvidos, o que reduz a demanda por plataformas de produção, navios de apoio marítimo e navios petroleiros aliviadores", conclui o Sinaval.
A crise se reflete em todos os polos navais do país. Além do Rio de Janeiro, onde o quadro é de fechamentos em série de estaleiros e de falta de perspectivas no Brasa e no Inhaúma, Pernambuco é um dos epicentros da turbulência. Henrique Gomes, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do estado, destaca a redução das encomendas do Estaleiro Atlântico Sul (EAS), que cancelou seu contrato com a Sete Brasil para construir sete sondas e teve uma drástica redução nas encomendas feitas pela Transpetro. Segundo Gomes, o número de trabalhadores do EAS passou de 11 mil em 2009 para 3.800:
— Desde 2015, três mil foram demitidos. Não está sendo dada continuidade aos projetos por causa de Lava-Jato e da crise do petróleo. Muitas empresas que prestavam serviços ao setor naval foram fechando. Já são seis fechadas e duas em recuperação judicial.
CORTES GERAM PERDAS DE R$ 100 MILHÕES
Na Bahia, onde as obras do estaleiro Enseada do Paraguaçu foram paralisadas, o reflexo já foi contabilizado. Entre novembro de 2014 e fevereiro de 2016, o corte de vagas na região gerou perdas de R$ 100 milhões, fruto da redução da massa salarial, de acordo com dados do governo local. É o oposto do que se viu entre 2013 e 2015, quando foram gerados R$ 360 milhões em serviços executados para o estaleiro, com a contratação de 678 empresas. O PIB (Produto Interno Bruto) da cidade de Maragogipe, que cresceu de R$ 194 milhões, em 2010, para R$ 753 milhões em 2013, deve recuar em 2015 e 2016. E, segundo o Ministério do Trabalho, 3.588 vagas foram fechadas na cidade no ano passado.
— Hotéis, restaurantes e empresas fecharam suas portas — avaliou Vera Lúcia dos Santos, prefeita de Maragogipe, do PR.
Diferentemente do que ocorreu na Bahia, as obras de construção do estaleiro Jurong Aracruz, no Espírito Santo, ainda não foram paralisadas, já que estão 90% concluídas. A empresa, contratada para construir quatro sondas, está quase terminando a primeira delas com recursos próprios. Hoje, o Jurong tem 1.800 colaboradores. Mas, diz uma fonte, a continuidade vai depender do processo de recuperação judicial da Sete Brasil, que reduziu seu projeto de 28 para dez sondas.
Em Rio Grande, o impacto na economia foi grande com a redução das atividades dos estaleiros QGI (Queiroz Galvão/Iesa), Rio Grande e EBR. Além da retração das encomendas da Petrobras, vários controladores de alguns desses estaleiros foram envolvidos nas investigações da Operação Lava-Jato. Nos últimos dois anos, houve redução de 13 mil postos de trabalho na região. Hoje, são apenas 7 mil empregados. O EBR está concluindo a construção de módulos de uma plataforma, e não tem novos projetos na mesa. O Rio Grande não tem projetos, segundo fontes, já que a construção de oito cascos para os navios-plataforma foram redirecionados para o exterior. Já o QGI, após a paralisação das atividades por meses, assinou aditivo ao contrato com a Petrobras em meados de 2015 para a construção e montagem de duas plataformas. Assim, espera gerar dois mil empregos até 2017, dando pouco alívio à região.
Para especialistas, vários fatores explicam a crise do setor. Um deles é o fato de a Petrobras estar direcionando parte das encomendas para a China. "A Petrobras anunciou que as encomendas de plataformas serão direcionadas para a licitação internacional de grandes integradores", disse o Sinaval. A estatal destacou que “avalia junto com parceiros a execução no exterior de parte do escopo das obras de plataformas com o objetivo de mitigar atrasos".
<>>CRÍTICAS AO PROGRAMA DE CONTEÚDO LOCAL
Maurício Almeida, presidente da Associação Brasileira dos Engenheiros e Técnicos da Construção Onshore, Offshore e Naval, que conta com 2.800 associados, critica a condução da política de conteúdo nacional:
— Foram criados polos navais pelo país por interesses políticos e não por razões técnicas. Foi uma desgraça anunciada. Pensou-se na criação de um setor somente num momento de pico e não na continuidade de demanda a longo prazo.
Miro Arantes, presidente do estaleiro Vard Promar, também critica a política de conteúdo nacional, que exige patamares a partir de 50%, em alguns casos. Atualmente, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) estuda a flexibilização das regras. Ao mesmo tempo, o órgão regulador pretende convocar audiências públicas sempre que uma petroleira alegar que não conseguiu atingir os índices exigidos, que são definidos em contrato no momento do leilão de blocos de petróleo.
— É preciso ter bom senso. De um lado, é uma temeridade não ter. Do outro, ter índices de 70% a 80% em alguns caso é exagero — disse Miro.
Marcelo Gomes, diretor executivo da Alvarez & Marsal, que conduz o processo de recuperação da Sete Brasil, destaca que as empresas do setor precisam passar por uma reestruturação. Um exemplo é o Estaleiro São Miguel, no Rio, que voltou a operar após uma reestruturação.
— O setor naval passa por forte momento de reestruturação por causa da crise da Petrobras e do novo patamar do preço do petróleo. As empresas precisam se reestruturar operacional e financeiramente para se adaptar à realidade. Ainda existem oportunidades no setor naval — disse.
Arrecadação de ICMS do setor naval cai 44% no Rio
Considerado o berço da indústria naval brasileira, o Rio de Janeiro reflete a forte redução das atividades da indústria de óleo e gás do país. Desde o ano passado, já foram demitidos cerca de dez mil trabalhadores. E o número pode aumentar, já que estaleiros como Vard Promar e Aliança vão fechar as portas nos próximos meses, enquanto outros, como o Brasa e o Inhaúma (Enseada Indústria Naval), têm seu futuro indefinido com a falta de novas encomendas. Em xeque, outros 4.200 empregos. Isso ocorre após o fechamento do Eisa Petro 1, em Niterói, que demitiu duas mil pessoas no fim de 2015, além do Eisa na Ilha do Governador, que demitiu outros três mil.
O cofre do estado, que já sofre com a queda da arrecadação dos royalties do petróleo, ainda vê o recolhimento de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do setor naval despencar. Segundo a Secretaria de Fazenda do Estado do Rio, o tributo gerado pelo setor caiu de R$ 8,5 milhões, nos primeiros quatro meses do ano passado, para R$ 4,7 milhões no mesmo período deste ano, uma queda de 44,2%. Em 2015, o recuo foi de quase 20%, quando ficou em R$ 17,6 milhões.
— Teve a queda do petróleo e a crise na Petrobras. Não tive contrato novo em 2015 e neste ano. Depois que entregar uma embarcação, que já está acabando, vou fechar o estaleiro em Niterói no meio do ano. Vou demitir 800 funcionários. Em 2015, eram 1.500 pessoas. Não vejo luz no fim do túnel — disse Miro Arantes, presidente do Vard Promar, que busca investir em outras áreas na unidade de Pernambuco, hoje focada em embarcações de apoio.
Dos cinco mil operários que circulavam pelas áreas do estaleiro Brasa no pico das obras em 2014, restam menos de 1.200. No prédio da área administrativa de três andares, um está tomado por dezenas de móveis novos sem utilidade, e o pátio, que antes fervilhava de trabalhadores, agora está quase vazio.
O gerente-geral do Brasa, Ivan Fonseca, afirma que, sem novas encomendas, terá de demitir para ficar com apenas 150 trabalhadores em junho. Hoje, o estaleiro termina as obras do navio-plataforma Cidade de Saquarema, para o pré-sal. Além dos R$ 150 milhões investidos no estaleiro, o executivo lamenta a perda de mão de obra qualificada e treinada se o estaleiro não conseguir novas encomendas.
— Para não fechar após a entrega da plataforma, estamos procurando diversificar atividades, com reparos em embarcações, apesar de termos limitações, por causa da falta de dragagem na área e do aluguel de áreas do estaleiro para embarcações realizarem serviços. E sonhamos com o pré-sal — disse Fonseca.
ENCOMENDAS DA CHINA
O BrasFels, em Angra dos Reis, sente os efeitos da crise do setor. Dos 9 mil trabalhadores em 2014, restam 4 mil. Desde o mês passado, as obras das três sondas da Sete Brasil foram paralisadas, já que o estaleiro não recebe pagamentos da empresa desde 2014 e só opera com recursos próprios.
“O estaleiro tem sido fortemente impactado pelo mercado em deterioração", disse a companhia. O BrasFels executa obras de duas plataformas para a Petrobras e um navio-sonda para Modec.
A gerente de Petróleo, Gás e Naval da Firjan, Karine Fragoso, estima que os estaleiros do Rio operam hoje com só 50% de sua capacidade. Marco Capute, secretário de Desenvolvimento do Rio, avalia que tudo é ancorado na Petrobras:
— Foram quase dez mil demissões e forte queda na arrecadação de ICMS. Além da falta de projetos, muitas das encomendas da Petrobras foram transferidas para a China. Não vejo a estatal fazer novas encomendas.
Entrega de navio sem motivo para comemorar
É tradição na indústria naval fazer uma festa no dia da entrega de uma embarcação, com a participação de todos os trabalhadores. Mas, na entrega do navio-plataforma Cidade de Saquarema à Petrobras em meados de maio, não haverá festa no Estaleiro Brasa em Niterói.
Os poucos trabalhadores no canteiro de obras do Brasa vivem um clima de incerteza, mas ao mesmo tempo têm esperanças de que a empresa consiga novas encomendas.
Jorge da Silva Brasileiro, de 56 anos, teme ter que voltar a trabalhar como açougueiro, profissão que exercia antes de entrar para o setor naval em 2003.
— Nossa esperança é que sejam abertas licitações para novas encomendas. Os projetos da Petrobras terão que ser feitos senão o pré-sal não vai existir. Tomara que uma boa porcentagem delas possa ser feita no Brasil. Se ficarem aqui, vamos passar essa maré difícil e vamos levantar de novo — disse Brasileiro.
Samuel Bernardino, de 32 anos, que é mestre de movimentação de carga, também não esconde o receio.
— A gente está aguardando licitações para novos trabalhos. A única coisa que a gente tem certeza é que vai ter cortes de pessoal. Tenho receio de perder meu trabalho. A gente estava em ascensão e, agora, não vê nenhuma perspectiva boa para o futuro.
Jonas da Conceição, de 39 anos, é montador de estruturas e está no Brasa desde o início:
— Estamos tristes e apreensivos, porque temos família para sustentar. Acredito que o estaleiro vai conseguir novas obras. Entregamos as unidades sempre em dia e sem acidentes. Estamos ansiosos, com medo de perder o emprego, mas satisfeitos de entregar a obra no prazo. (Ramona Ordoñez)