sábado, 19 de setembro de 2015

Dissidentes cubanos lamentam não estar na agenda do Papa

Marina Gonçalves - O Globo

Francisco evitou até agora tocar em temas sobre repressão e direitos humanos na ilha



Bandeira do Vaticano e a imagem de Che Guevara lado a lado na Praça da Revolução, em Havana
Foto: FILIPPO MONTEFORTE / AFP
Bandeira do Vaticano e a imagem de Che Guevara lado a lado na Praça da Revolução, em Havana - FILIPPO MONTEFORTE / AFP


Cubano caminho por cartazes do Papa Francisco e de Che Guevara nas ruas de Havana - FILIPPO MONTEFORTE / AFP

Sem papas na língua, em dois anos e meio de pontificado Francisco ficou conhecido por abordar temas polêmicos até então não mencionados por nenhum outro líder supremo da Igreja Católica — gays, machismo e divórcio, dentre tantos outros. Mas o grande articulador da reaproximação entre Estados Unidos e Cuba, que começou em dezembro do ano passado, furtou-se até agora em abordar um assunto crucial: a repressão política na ilha. 

Durante uma jornada pelos dois países, que começa neste sábado, o Papa deve fazer 26 discursos. Mas ativistas, antes esperançosos de que o tema fosse mencionado, já não acreditam que o Pontífice ouse abordar o assunto.

Berta Soler, líder das Damas de Branco — que se reúnem aos domingos justamente em uma igreja católica na capital cubana — conta que há cerca de dois meses enviou um documento ao Papa, solicitando um encontro, ainda que rápido. Não obteve resposta.

— Obviamente o Papa está a par da problemática que existe em Cuba, ele conhece essa violência. Nossa intenção era justamente pedir que ele intercedesse pela libertação dos presos políticos e em temas como a violência e a repressão castrista em relação àqueles que pensam diferente do governo — explica por telefone ao GLOBO, de Havana.

De Miami, o dissidente Ramón Saúl Sánchez, presidente da ONG Movimento Democracia, começou na quarta-feira uma greve de fome. Exilado nos Estados Unidos há 50 anos, Ramón, que hoje tem 61, afirma que não se trata de um protesto pela visita do Pontífice. Pelo contrário: é um apelo à consciência de Francisco para que mais uma vez atue como mediador.


— O Papa está cuidando da sua relação com o regime dos Castro, e por isso não foi mais explícito sobre o tema da violência contra mulheres, por exemplo, principalmente contra as Damas de Branco, que acontece diante do próprio templo católico. Se tocar nesses assuntos, tenho a impressão que alguns espaços serão fechados a ele — acredita Sanchéz.

VISITA PASTORAL, NÃO POLÍTICA

Assim como Berta e pelo menos outro três ativistas, Sánchez enviou uma carta a Francisco, em maio. Segundo ele, o documento foi entregue em mãos por um amigo em comum. Sem respostas e nenhuma evidencia de que o Papa vá se reunir com ativistas, o dissidente, no entanto, não perdeu as esperanças.

— Se ponho minha saúde em risco é porque peço, respeitosamente, para que o Papa seja um articulador e nos ajude a solucionar esses problemas. É um apelo à sua consciência, não um protesto. O governo não pode negar que golpeia pessoas na rua, nem que 20% da população vive hoje exilada, fora do país — diz ao GLOBO.

Na última quarta-feira, a Santa Sé anunciou que o Pontífice se mostrará contrário ao embargo americano a Cuba durante a visita, “mas não abusará do tema”. E insistiu que a visita será pastoral, não politica. O próprio porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, acredita que essa será a viagem mais complexa de Francisco. E também a mais longa: em nove dias no continente americano o Pontífice passará pelos dois países. Primeiro em Cuba, onde se reunirá com o presidente, Raúl Castro, e não descarta que se encontre o ex-presidente Fidel Castro. Depois irá para os EUA, onde será recebido por Barack Obama, e passará por Washington., Nova York e Filadélfia.


O trajeto do Papa Francisco - Editor

Ativistas, no entanto, não devem ter espaço na agenda. E mais: alguns denunciam que a polícia já começou a advertir dissidentes sobre possíveis detenções, caso tentem participar de missas e outros eventos abertos. O governo também começou a retirar das ruas mendigos e moradores sem-teto, numa espécie de “limpeza antes da visita”, denuncia a Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN). Semanas antes, o governo também havia anunciado o indulto de mais de 3.500 presos, um número sem precedentes. Nenhum deles, no entanto, detido por razões políticas.

— O Papa é um estadista, duvido que se encontre com alguém que não seja de governo. Ele será cuidadoso, como os Papas anteriores — acredita Elizardo Sanchéz, presidente da CCDHRN. — Alguns ativistas, inclusive, já foram alertados sobre possíveis prisões preventivas. A visita do Papa terá sim pontos positivos, mas certamente não irá mudar o aspecto repressivo do governo de Cuba.

O número de detenções de presos políticos aumentou nos últimos meses: em julho foram 674 prisões, segundo a CCDHRN, o maior número desde junho de 2014. A repressão ficou mais evidente justamente após a retomada de relações com os Estados Unidos — o que, para alguns, piorou ainda mais com o anúncio da visita papal. Berta Soler acredita que o silêncio por parte dos EUA em se pronunciar sobre alguns temas deu ainda mais poder ao regime. Para Ramón Saúl Sánchez, a repressão aumentou porque o ativismo também aumentou.

— O governo decidiu há algum tempo que a oposição deve se manter sempre do mesmo tamanho. É uma decisão aparente, não pública. Mas, com a abertura das relações, a sociedade civil passou a ser mais esperançosa e falar mais abertamente, e por isso o governo a reprime. Se a repressão está crescendo é porque o ativismo também está crescendo. Na cultura, na música, até em peças de teatro, os cubanos estão cada vez mais expressando seu desejo de mudança.

LIBERDADE RELIGIOSA EM XEQUE

A liberdade religiosa na ilha é outro tema que deveria ser abordado na visita, segundo os ativistas — que acusam a Igreja Católica cubana de se silenciar em relação aos abusos do governo. Em uma conta no Twitter criada especialmente para a visita, Francisco escreveu esta semana que “em Cuba existe uma ampla liberdade religiosa”.

“Em Cuba cada um tem o direito de professar sua fé religiosa, sem temor de sofrer discriminações”, afirmou o Papa na rede social.

Para Berta, no entanto, na prática não é assim que as coisas funcionam.

— A hierarquia da Igreja não se pronuncia contra a repressão, não fala de direitos humanos, não reconhece a realidade do país, nem que existam presos políticos. Seu discurso é parecido ao do regime — acusa a líder das Damas de Branco, que diz que um pároco proibiu o grupo de se encontrar em uma igreja da província de Cienfuegos. — Inclusive o cardeal (Jaime Ortega) não nos reconhece como ativistas.


Amanhã, será celebrada uma missa na Praça da Revolução, mesmo lugar onde seus antecessores, João Paulo II, em 1998, e Bento XVI, em 2012, presidiram cerimônias durante suas visitas. O Pontífice também celebrará a primeira comunhão pessoalmente a cinco crianças — primeira vez que isto ocorre durante uma viagem ao exterior, segundo o porta-voz do Vaticano.

O ponto positivo, para Ramón Sanchéz, está no fato de ser o primeiro Papa latino-americano a pisar em Havana. O próprio Raúl Castro, quando fez o histórico anúncio, no ano passado, referiu-se calorasamente a Francisco, “um latino-americano como ele, que simpatiza com muitos dos ideais da Revolução Cubana”.

— Ele entende as dinâmica da nossa área, nossa cultura, nosso povo. Mas a América se cansou dos políticos tradicionais. Nessa espécie de vazio politico, precisamos tomar um rumo de real civilismo e progresso. Não gostaria de experimentar o desencanto de que o interesse de subsistência da Igreja fique à frente da necessidade ética de entender a pessoa humana antes do Estado. Tenho fé de que não será assim.