quarta-feira, 23 de setembro de 2015

"A esquerdofrenia", por Arnaldo Jabor

O Globo

Apavora a marcha a ré que nos ameaça, por falta de memória e burrice do poder


Leio no jornal que o economista Fabio Biambiagi escreveu um livro chamado “Capitalismo — Modo de usar”, onde há uma frase essencial para entendermos o caos da economia brasileira: “mesmo após o sepultamento do socialismo no mundo e a ascensão do capitalismo como sistema dominante em quase todo o planeta, o Brasil mantém um componente anticapitalista enraizado na sociedade” . O PT é nefasto não apenas por ser o clube da corrupção, mas por praticar essa esquizofrenia de governar um país capitalista com uma cabeça socialista.

Deu no que deu: tudo o que era solido no país hoje se desmancha no ar. A catástrofe era inevitável porque eles não têm memória (ou não querem ter) do passado de erros que a chamada “esquerda” cometeu, nos últimos 50 anos.

Eu já fui do partido comunista. Por três semanas. Nunca vi nada tão chato como reunião de comunas. As discussões jamais contemplavam a complexidade do processo brasileiro. 

Tudo se dividia em três classes: o proletariado, a pequena burguesia e a burguesia, todas dominadas pelo chamado “imperialismo norte-americano” — a palavra mágica que tudo explicava. O que mais me intrigava e irritava eram as toscas premissas para a ação política.


Dentro desse enorme país, raciocinávamos com as mesmas ideias que ressoam até hoje nas reuniões dos herdeiros da ilusão: o PT, melhor, o Ex-PT, hoje oportunista e de direita. E, pior, essa estupidez é ensinada pelos professores nas universidades, catequizando jovens desinformados.

Mas eu, na minha vacilação de “pequeno- burguês da Zona Sul”, olhava do meu canto a sutil burrice nas ideias e sentia que alguma coisa estava terrivelmente errada naquela esperança arrogante. Eu via o reducionismo, a insensatez nas discussões, não porque eu fosse mais lúcido, mas porque o delírio era muito visível. Qualquer dúvida levantada contra a “linha justa” era denunciada como “revisionismo” ou alienação.” Discutíamos infinitamente para chegar à mesma conclusão da qual partíamos. Ideologia é isso. Quase todos esses cacoetes derivavam de um só sentimento: “Somos superiores”.

Antes do golpe de 1964, antes da luta armada pós-68, já vivíamos na ilusão de um programa para o país feito de projetos inócuos como “reformas de base”, reforma urbana, agrária etc., mas ninguém tinha a mínima ideia de como implantá-las. Vivíamos de frases, pois a competência era coisa de gente de “direita”, que raciocinava dentro do “sistema”. Era espantoso o autoengano. Antes do golpe, nós nos comportávamos como destinados a uma missão, que seria fácil. Falávamos uma língua própria, gestos próprios, e contávamos até com o presidente da República para dar partida à revolução. Relacionávamo-nos como companheiros de uma grande missão. Estava tudo nítido na maneira de falar, nas certezas irremovíveis, no sentimento de especialidade em relação ao resto do país; e até mesmo durante a ditadura, nossa dor nos enobrecia como “vitimas do mal”, sentindo um certo orgulho de nossa solidão.

O golpe de 64 não aconteceu apenas por causa das marchas da família com Deus, mas deu-se pela absoluta ignorância da população sobre esses desejos teóricos sem base na realidade. Ninguém sabia de nada. Falávamos de operários e camponeses como se eles estivessem de mãos dadas conosco — os “revolucionários”. O espantoso foi a facilidade com que se deu o Golpe. Descobrimos (alguns) que não tínhamos nada nas mãos, que nosso sonho tinha virado um pesadelo. E até hoje muita gente não se dá conta disso. E mais: esses caras que estão no poder acham que estão retomando a agenda de 1963, na base do “antes não deu, mas agora vamos”.

No entanto, dentro do curto espaço democrático que ainda havia, o Brasil ficou mais inteligível depois da queda de 1964. A desgraça nos ensinou muito. Ficou mais claro que o buraco era mais embaixo, que a realidade brasileira não se resumia a três ou quatro obviedades críticas. O golpe sofisticou nosso entendimento. Mas os futuros e atuais petistas renegaram essa evidência.

Depois, a barra pesou. O ano de 1968 foi o inicio de outro tipo de ilusão. Derrotaríamos a ditadura com armas revolucionárias. Bela proposta inexequível — foram muitos admiráveis heróis, mas, apesar disso, estavam errados. A luta armada foi uma tragédia das ilusões perdidas. Vimos então a espantosa eficiência da repressão. Foi um massacre. Essa coragem dos guerrilheiros era inviável por causa da mentalidade das tradicionais regras de luta armada clássica. A guerrilha urbana trabalhava nas brechas escuras da realidade, secreta, fugindo da morte, achando que iam derrotar o Exercito com meia-dúzia de revólveres e assaltos a banco. A guerrilha foi heroica mas convencional. Havia quase 40 grupos na luta armada.

Um dos celebrados líderes foi Carlos Marighella, herói voluntarista e onipotente que, entre outros indícios de loucura, escreveu, no “Manual de guerrilha” : “É necessário que todo guerrilheiro urbano tenha em mente que somente poderá sobreviver se está disposto a matar os policiais e todos aqueles dedicados à repressão, e se está verdadeiramente dedicado a expropriar a riqueza dos grandes capitalistas, dos latifundiários, e dos imperialistas.” Nunca disse como. Leiam o resto na web.

O grande salto qualitativo, a grande vitória da guerrilha foi a superação desse silêncio secreto por um gesto que repercutiu no mundo todo: o sequestro do embaixador americano por Gabeira e seu grupo. Foi um ato contemporâneo muito mais eficaz do que heroísmo e suicídios secretos. Isso questionou a ditadura, expôs sua vergonhosa impotência diante da imaginação dos guerreiros. A ditadura sentiu o golpe e redobrou sua violência criminosa, mas sua mediocridade estava exposta.

Por isso me apavora a marcha a ré que nos ameaça, pela falta de memória e burrice do poder. Agora, quando o capitalismo está na China e renasce timidamente em Cuba, só resta a eles a companhia da Coreia do Norte.