segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Demétrio Magnoli, 'Haddad e a história aberta'

Uma leitura circunstanciada das sondagens eleitorais indica que Fernando Haddad, o Lula de reposição, é o favorito para subir a rampa do Planalto em janeiro de 2019. Bolsonaro dificilmente perderá uma vaga no segundo turno, pois as chances de Alckmin repousam apenas na esperança de que a propaganda eletrônica produza um milagre. Há tempo suficiente para os eleitores lulistas receberem a notícia da reposição — e quase 70% deles dizem-se prontos a seguir a ordem de Lula. No turno final, a rejeição a Bolsonaro elege qualquer adversário. A chance real de vitória situa Haddad numa encruzilhada histórica: ele deve optar entre inércia e ousadia.

A via inercial é a reiteração da narrativa negacionista adotada pelo lulopetismo desde 2016. 

O núcleo dessa narrativa encontra-se na qualificação do impeachment como “golpe parlamentar”, que tem repercussões para trás e para frente. Numa ponta, o PT recusa-se a fazer a crítica da política econômica dilmista. Na outra, consequentemente, rejeita o princípio do equilíbrio fiscal.

Marcio Pochmann, coordenador do programa econômico de Lula/Haddad, argumenta que o erro do governo Dilma não foi a política de explosão de gastos, mas sua reversão, em 2015, pela entrega do Ministério da Fazenda a Joaquim Levy. A tese insana foi assumida pelo próprio Haddad, que a expôs em entrevista a “O Estado de S.Paulo”: “Houve uma decisão de política econômica equivocada, com um ministro da Fazenda que expressava a ruptura do que tinha sido feito em 13 anos”. A acrobacia revisionista suporta o programa da restauração do dilmismo: abolição do teto de gastos, rejeição da reforma previdenciária, cancelamento da reforma trabalhista.

Criada para aquecer a militância na hora da derrota, a narrativa serve para a finalidade de angariar votos — mas não para governar. Na moldura da nova “crise dos emergentes” deflagrada na Turquia e na Argentina, nossa trajetória fiscal será punida implacavelmente pelas forças de mercado. Um Haddad triunfante à base do discurso populista reproduziria o estelionato eleitoral de Dilma, mas seu giro ortodoxo teria que ser operado em meio a um cenário econômico externo hostil. É uma receita para o desastre.

A depressão econômica foi contratada, desde 2010, pela deriva populista de Lula e Dilma. 

O recuo ortodoxo dilmista de 2015 foi um remédio tardio aplicado a um doente em coma. Lula, ele mesmo, admitiu os erros colossais de política econômica (atribuindo-os, todos, à sua sucessora), ao defender o nome de Meirelles para a Fazenda, logo após a reeleição de Dilma. O revisionismo histórico lulopetista inspira-se nas antigas enciclopédias soviéticas, que apagavam fatos e fotos inconvenientes. Pochmann, um doutrinário incorrigível, acredita nele. Já Haddad não crê em bruxas, como indicam suas declarações semiprivadas a interlocutores do meio empresarial e do mercado financeiro. Nesse contraste, mora uma possibilidade.

O PT desceu à trincheira do populismo para escapar a um encontro com o futuro. A “era lulista” chega ao fim, como resultado da catástrofe dilmista, do impeachment e da condenação de Lula. O revisionismo negacionista é uma tentativa agônica de conservar um mundo de certezas partidárias que se dissolve. A prolongação artificial do lulismo num hipotético governo Haddad atiraria o país numa espiral caótica similar à que capturou o Estado do Rio de Janeiro. O vórtice consumiria, junto, o PT.

A saída existe, mas depende da integridade política e da independência intelectual de Haddad. O candidato inventado no laboratório lulista tem a oportunidade de corrigir a narrativa ainda durante a campanha eleitoral, falando em público aquilo que fala entre quatro paredes. O reconhecimento franco de um certo número de realidades ancoraria as expectativas do mercado, estabeleceria as fundações de um amplo acordo anti-Bolsonaro no segundo turno e eliminaria o espectro do estelionato eleitoral. Paralelamente, 
reconciliaria o PT com o futuro, inaugurando o pós-lulismo. Haddad pode ousar, refundando a esquerda brasileira, ou optar inercialmente pelo destino de Dilma.


O Globo