terça-feira, 2 de janeiro de 2018

"O terceiro dia", Por Roberto DaMatta

O Globo

Se esse processo de correção continuar, em 2018 assistiremos a uma grande transformação. Como a humanização de prisões quando elas começam a enjaular “gente grande”


Neste terceiro dia de 2018, o qual, no nosso parco otimismo, é um novo ano (e, Deus permitindo, será uma nova vida), o primeiro sentimento é o da volta da crise ao lado do fim das ceias e vinhos. Comida, bebida e fogos são os ingredientes das festas de passagem de calendário. Aquilo que é realizado na esperança que 2018 seja o tempo de um adeus definitivo aos crimes contra o Brasil.

Se 2017 desmascarou um sistema oficializado de propinas presenteadas aos “cuidadores” do povo pelos donos do poder; ao lado do desequilíbrio entre a sociedade com seus trabalhadores recebendo aposentadorias miseráveis e de um funcionalismo público aristocratizado, o mínimo que se espera neste ano novo é mais equilíbrio entre Estado, governo e sociedade. Mais sincronia entre valores culturais (incluindo neles ideais éticos e morais) e velhas práticas caseiras nas quais quem manda se confunde com a coletividade e tira para si e os seus, o que é de todos.

Se esse processo de correção continuar, em 2018 iremos assistir a uma grande transformação. Um exemplo já mencionado nesta coluna é o da humanização das prisões quando elas começam a enjaular “gente grande”.
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Todo rito de calendário tenta cortar o tempo condensado pela festa que também articula nossos desejos de mudança. Que assim seja nesse 2018 que hoje vive o seu terceiro dia.
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Depois da festa, vem a rotina. Ninguém aguenta beber somente água ou vinho o tempo todo...

A lei das ironias e dos contrastes fabrica o drama e o ritual com os quais tentamos conter a corrente da vida. Mas, no caso deste Brasil nu diante de si mesmo, elas devem ser filtradas. Passado a limpo, o mundo público brasileiro tem que iniciar o duro processo de juntar a casa com a rua; o pessoal com o impessoal, o cargo com quem o ocupa.
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Deus levou sete dias para fazer o mundo. No primeiro dia, fez a luz; no segundo, o firmamento; no terceiro, a terra e as árvores. No quarto dia, fez o sol, a lua e as estrelas; no quinto, as aves e os peixes; no sexto, os répteis e os animais selvagens e domésticos e, significativamente, nesse mesmo dia, Ele nos fabricou. No sétimo dia, já que ninguém é de ferro, Ele contemplou a sua criação, e descansou.

Dizem que nós, humanos, fomos criados depois dos animais porque, caso contrário, seríamos devorados pelo orgulho. Para outros, porém, tudo foi feito para nós. Hoje não há como não ver que é a natureza que tem o devido direito sobre nós.
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Enquanto você, leitor, pensa essas questões, eu estou na Irlanda (mais precisamente em Cork), onde, diariamente, medito sobre elfos e duendes em velhos e friorentos castelos.

Mas continuo perseguido pela ironia. Nos Estados Unidos, ouvi muito sobre irlandeses. 

Cheguei mesmo a ter como amigo Brian O’Malley, estudioso da cultura celta e da conturbada história irlandesa que, pensando bem, é um mar de rosas comparada com as nossas crises que saem umas de dentro das outras.

Foi O’Malley que, numa discussão sobre filosofia de São Patrício, o catequista de uma Irlanda pagã, sai-se com essa: você sabe por que Deus inventou o uísque?
— Não!, respondi.

— Se não o tivesse feito, os irlandeses seriam os donos do mundo...

Ao sair do Brasil, compramos duas garrafas de um bom uísque para O’Malley. A vendedora, porém, não lacrou o pacote, e o uísque foi confiscado na fronteira da Inglaterra com a Irlanda.

Ironia das ironias: entrei na terra para a qual o Criador inventou o uísque, sem o líquido dourado que tanto apreciamos.

Meu amigo irlandês, enretanto, não desistiu. Antes, pelo contrário, levou-nos à mais antiga e famosa destilaria irlandesa. Ali vimos o maior alambique do mundo e tivemos uma forte impressão das miseráveis condições dos operários do uísque. Quanto mais eu andava por meio daquelas monstruosas máquinas típicas do século 19, mais eu matutava: O’Malley está mais ou menos certo. Deus inventou o uísque, mas a sua fabricacão capitalista inventou Karl Marx, que percebeu o horror dos seus trabalhadores.