sábado, 18 de novembro de 2017

"Às margens do Atlântico", por José Casado

O Globo

O livro de José Sócrates, com prefácio de Lula, seria só um caso de fraude e oportunismo, mas virou episódio hilariante no inquérito sobre a corrupção do ex-premiê português



Seis balas. O tiro no rosto ricocheteou no anel da mão espalmada em gesto maquinal de autodefesa. Outras cravejaram o corpo. Recém-chegado de Lisboa, visitava a prima no Recife, então abalada por uma crise conjugal. Foi alvejado pelo ex-marido enciumado, ex-policial, para quem o desconhecido era um rival flagrado sob o sol na calçada da antiga residência.

Dezessete anos depois, o sobrevivente Domingos Soares Farino, advogado e professor, está de novo no centro de uma investigação policial. Desta vez, não é vítima, mas suspeito de cumplicidade com o ex-primeiro-ministro de Portugal José Sócrates (2005 a 2011), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro.

A polícia de Lisboa aponta Farino como verdadeiro autor do livro “A confiança no mundo”, sobre tortura de terroristas da al-Qaeda. A capa tem o nome de Sócrates e destaca o prefácio assinado por Lula — “meu melhor amigo da ação”, dizia o ex-primeiro-ministro português.

Sócrates apresentou a obra no fim do seu mestrado no instituto francês Sciences Po. Lula viajou a Paris e discursou no lançamento do livro, na quarta-feira 23 de outubro de 2013.

Seria apenas mais um caso de fraude e oportunismo (há provas de que o governo Sócrates permitiu o tráfego clandestino de prisioneiros da CIA para a base de Guantánamo). Porém, se transformou num episódio hilariante dentro do caso de corrupção protagonizado pelo ex-primeiro-ministro português, durante sua parceria com o governo Lula na construção de uma “supertele” de língua portuguesa.

Ao sair do poder, o ex-líder socialista teve uma ideia: breve refúgio acadêmico em Paris, do qual emergiria com um best-seller em Ciência Política. Segundo o Ministério Público, ele gastou € 600 mil (R$ 2,1 milhões) na contratação do sobrevivente Farino para escrever, na edição e na operação de compra de 17,5 mil exemplares do próprio livro, auxiliado por uma equipe que coordenou por mais de nove meses.

Os investigadores mapearam as compras, gravaram Sócrates dando ordens e relataram à Justiça: “As pessoas envolvidas na aquisição dos livros podiam, após a compra, desfazer-se dos mesmos, colocando-os no lixo, dado que o único objetivo era aumentar o número estatístico de exemplares vendidos, de forma tomar o livro um fenômeno de vendas sem precedentes.”

É missão impossível conseguir um único volume de “A confiança no mundo” nas livrarias de Lisboa. No entanto, sobram cópias das quatro mil páginas do inquérito em que Sócrates é acusado de corrupção, lavagem de dinheiro e fraude fiscal.

Nelas afirma-se que o dinheiro usado para criar o seu “best-seller” teve origem em milionário suborno (R$ 105 milhões) pago pelo banqueiro Ricardo Salgado, do Grupo Espírito Santo, como contrapartida à garantia de lucros com a fusão da Portugal Telecom com a Telemar/Oi — negócio de R$ 40 bilhões na época.

Sócrates e Lula embriagaram-se com o projeto da “supertele” lusófona. Deram-lhe formato na quinta-feira, 28 de julho de 2010, dois meses antes da eleição de Dilma Rousseff.

Sete anos depois, o ex-primeiro ministro, seu escritor, o ex-presidente e o ex-banqueiro batalham nos dois lados do Atlântico para escapar da cadeia. A Portugal Telecom naufragou. A Oi cambaleia à beira do abismo com R$ 70 bilhões em dívidas.