domingo, 28 de maio de 2017

No centenário de Kennedy, lições para Trump

O presidente John F. Kennedy anuncia o bloqueio naval a Cuba, durante a crise dos mísseis em 1962 (Foto: Getty Images)

Henrique Gomes Batista - O Globo

WASHINGTON — O centenário do nascimento de John Kennedy — o mais popular presidente americano da era moderna, que será comemorado nesta segunda-feira —, pode dar algumas lições a Donald Trump, o homem mais impopular a ocupar a Casa Branca. Historiadores e especialistas afirmam que, apesar de grandes diferenças entre ambos, alguns dos desafios atuais poderiam ser mais bem equacionados se o republicano tentasse copiar parte das estratégias do democrata. E, por incrível que pareça à primeira vista, ambos possuem algumas similaridades em suas vidas e desafios políticos.
Os dois — cujos governo são separados por mais de 50 anos — dividem características importantes. A principal delas é um domínio da comunicação: se parte do mito Kennedy se deveu à forma como ele entendeu e tratou a grande mídia, sobretudo a novata TV, o fenômeno Trump pode ser explicado por sua comunicação direta, graças à explosão das mídias sociais. Nascidos ricos, colocaram diversos familiares em postos-chave de seus governos: Trump com a filha e o genro, Kennedy com o irmão como procurador-geral. E, de quebra, ainda há a fama de mulherengo que os dois conservam. Além disso, fortes crises no início de suas gestões aproximam o republicano, considerado um populista que utiliza da força conservadora dos EUA, do democrata, um progressista nato.
Poucos resultados e muitos escândalos
Até mesmo o início de ambos governos foi marcado por fracos resultados e muitos escândalos. Trump não conseguiu aprovar nenhum projeto de lei relevante, viu as principais ordens executivas bloqueadas pela Justiça e está às voltas com a polêmica com a Rússia, com parte da campanha investigada por denúncias de que aceitaram ajuda externa nas eleições de novembro. Kennedy, por sua vez, também não conseguiu ampliar o sistema de programas sociais no início do governo, passou por uma polêmica com a indústria de ferro e aço — que pediu para que não houvesse aumentos de salários, mas reajustou o preço dos produtos — e, ainda viveu o fiasco da tentativa da invasão da Baía dos Porcos, em Cuba.
Grandes crises marcam os dois períodos. Nos anos 1960, a Guerra Fria e a ameaça nuclear eram um desafio ainda maior que o terrorismo, a situação dos refugiados e a tensão com a Coreia do Norte. As diferenças entre ambos — e as lições para o republicano — começam aí.
— Enquanto o governo Kennedy respondeu a inúmeras crises durante seus mil dias de mandato, o governo Trump simplesmente cria os seus problemas — resume Davis Houck, professor da Florida State University, especializado em retórica presidencial. — JFK usou a eloquência presidencial de forma estratégica e cuidadosamente calibrada, enquanto Trump usa obsessivamente tuítes com insultos pueris e muitas vezes acusações sem fundamento.
Para Houck, o republicano precisa aprender com quase todos os demais presidentes questões básicas, como conhecimento dos principais temas do país e melhor noção da diplomacia. Especificamente de Kennedy, o conselho do especialista é até relativamente simples:
— Trump precisa aprender quando é melhor permanecer em silêncio.
Uma das principais diferenças entre os dois é justamente no dia a dia da política. Kennedy — que não viveu para ver muitos projetos aprovados, embora tenha criado condições para que mudanças importantes ocorressem anos após sua passagem pela Casa Branca, como o reconhecimento dos direitos civis dos negros — era um negociador hábil, bem integrado com o partido. Já Trump se orgulha de ser um outsider e tenta impor suas ideias e projetos mais pela pressão, intimidação e ameaça do que pelo convencimento.
— Trump talvez queira refletir sobre a disposição de Kennedy, particularmente após o desastre na Baía dos Porcos, de agir de forma deliberada, de consultar profunda e cuidadosamente seus conselheiros e de abster-se de personalizar a política e as divergências políticas. Embora Kennedy tivesse certamente sentimentos fortes sobre adversários políticos e propostas, reconheceu a sabedoria em subordiná-los às necessidades de governar — afirmou ao GLOBO Marc J. Selverstone, presidente do Programa de Recordações Presidenciais do Miller Center, da Universidade da Virgínia.
Em sua opinião, a impulsividade de Trump contrasta fortemente com a forma pragmática com que Kennedy encarou a Presidência, a ponto de ser vistos por muito até como um homem “de coração frio”. Assim, o temperamento do republicano impede coalizões, enquanto JFK ficou famoso por sua capacidade de fazer acordos e aprender com erros. A base de sustentação social do governo é outro ponto de distanciamento, segundo o especialista.
— A escolha de pessoal de Kennedy em seu governo refletiu uma combinação inteligente de pessoas de Washington, de Wall Street, da indústria, da academia e dos trabalhadores. O gabinete de Trump parece voltado apenas aos CEOs (presidentes) das empresas da área financeira e de grandes companhias.
Especialista na história dos presidentes americanos no século XX, Leo Ribuffo, professor da George Washington University, na capital americana, afirma que Trump precisa aprender com JFK a capacidade de se adaptar às realidades que estão em constante mudança.
Em sua opinião, Kennedy deu três bons exemplos: minimizou a retórica anti-Rússia e obteve um acordo com Moscou após a crise dos mísseis — que de certa forma ele mesmo ajudou a criar — quando obteve um importante acordo com Nikita Khrushchev (ex-Primeiro-ministro da União Soviética); em vez de decidir com a emoção, deixou-se convencer por seus conselheiros a abraçar uma gestão mais keynesiana da economia, defendendo orçamentos equilibrados, porém com déficit, utilizados para estimular a economia e gerar o boom da década de 1960; e, por fim, no debate sobre os direitos civis, embora não tenha abraçado totalmente a causa da igualdade — muitos creditam isso ao seu pragmatismo e o medo de perder a reeleição graças aos estados sulistas — deu passos que permitiram leis importantes, embora só tenham se tornado realidade após seu assassinato, em Dallas. E isso ele obteve com política:
— Kennedy foi cuidadoso em cultivar republicanos moderados. Seu secretário de Tesouro, Douglas Dillon, um financista, tinha sido vice-secretário de Estado sob Eisenhower. O secretário de Defesa, Robert McNamara, também era um republicano moderado. JFK manteve o republicano Allen Dulles como diretor da CIA (um grande erro, como mostrou o caso da Baía dos Porcos). Ao contrário de Trump, que parece considerar generais os mais confiáveis conselheiros, JFK desconfiava dos militares — afirmou o especialista.
Nível de aprovação separa presidentes
A morte mais televisionada da História, sua família cheia de glamour e o clima da época — com o otimismo e a incredulidade da corrida espacial — também ajudaram a dourar a imagem de Kennedy. Trump, por sua vez, tem que superar seus problemas em um ambiente de rescaldo de crise global, problemas climáticos e desesperança generalizada. No fim das contas, o governo de JFK tem, segundo pesquisa do Ipsos para a Universidade de Virgínia, 87% de aprovação dos americanos, muito mais que o dobro dos 37% que apoiam Trump. Resida aí talvez a maior diferença entre os dois presidentes.