domingo, 28 de maio de 2017

Livros resgatam relatos femininos de vítimas do nazismo no Holocausto

Guilherme Magalhães - Folha de São Paulo


Quando criança, na Londres dos anos 1950, Angela Schluter recebia dezenas de cartões de aniversário de familiares no exterior —os remetentes iam desde Viena até a Austrália. Muito nova, ela não notava que a letra era sempre a mesma.



A autora era Edith Hahn Beer, sua mãe, que enviava os cartões para que a filha tivesse a impressão de que, em algum lugar, havia uma grande família lhe desejando votos de feliz aniversário.

Não havia. O Holocausto engoliu quase todos os membros da família Hahn de Viena. Angela tinha já seus 52 anos quando, durante uma visita à casa de um amigo, descobriu como sua mãe, judia, havia sobrevivido ao horror nazista.

Ao responder a essa pergunta feita pelo amigo da filha, Edith revelou que havia assumido a identidade de uma amiga cristã, Grete Denner, deixando Viena rumo à Munique. Lá, conheceu o pai de Angela e seu primeiro marido, Werner Vetter, um membro do Partido Nazista.

Edith atravessou parte da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) disfarçada como dona de casa no coração do Terceiro Reich. Confessou a Vetter sua verdadeira origem ao ser pedida em casamento. Ele não deu mostras de se importar —retrucou que também ele havia escondido um segredo: era casado e pai de uma filha, mas iria se divorciar.

"Eu fiquei chocada que vivi minha vida com essa mulher e não soube de nada sobre ela, algo tão importante", afirma à Folha Angela, 73, que ainda mora em Londres. "Ela nunca falou sobre, queria me proteger. Até aquele dia, quando meu amigo perguntou a ela, e ela respondeu."

Por insistência da filha, as memórias deram origem ao livro "A Mulher do Oficial Nazista", publicado nos Estados Unidos em 1998, no Reino Unido no ano seguinte e agora no Brasil, pela editora HarperCollins (272 págs., por R$ 39,90).

"Acho que ela estava feliz por ter tirado isso do peito dela. Claro que há uma sombra, mas não é uma história de campo de concentração. É diferente e tem o ponto de vista de uma mulher. A maioria é escrita por e sobre homens", conta Angela.

Antes de assumir a identidade de Grete, Edith, que nunca pôde concluir o doutorado em direito, foi semiescrava em uma plantação de aspargos e depois em uma fábrica de papel na Alemanha. Ao retornar para Viena, em junho de 1942, sua mãe acabara de ser enviada para um gueto na Polônia. Klothilde Hahn foi uma das primeiras vítimas do campo de extermínio de Maly-Trostinets, hoje em Belarus.

Angela recorda uma manhã em sua casa, em Londres, quando a mãe já passava dos 90 anos e estava com a saúde debilitada após uma cirurgia cardíaca. "Ela olhou para mim com seus grandes olhos castanhos e disse: 'Não consegui dormir'". Edith havia decidido, durante a noite anterior, contar os parentes assassinados no Holocausto. "Ao chegar no número 24 eu parei de contar", disse ela à filha.

No final da guerra, o marido de Edith (ou Grete), mesmo cego de um olho, foi convocado pelo regime nazista em um último esforço de recrutamento. Poucas semanas após pisar em um campo de batalha, foi ferido e capturado pelos russos.

Libertado em 1947, encontrou um lar diferente ao voltar para casa, em Brandemburgo, no leste da Alemanha, região que agora era controlada pelos soviéticos. Edith era juíza e dividia os cuidados de Angela, então com três anos, com a reconstrução do sistema judiciário local. Vetter queria Grette, a dona de casa submissa. O divórcio foi a saída.

Ao ser pressionada a colaborar com a NKVD, polícia secreta soviética, Edith percebeu que escapara de um Estado policial apenas para cair em outro. Fez as malas e partiu com Angela para Londres, onde morava uma de suas irmãs que havia conseguido escapar dos nazistas antes do início da guerra —a outra foi para a Palestina, então sob domínio britânico.

Como suas qualificações legais não eram válidas no Reino Unido, Edith nunca mais trabalhou com o direito. Casou-se com um comerciante de joias, também judeu, em 1957. "O segundo marido de minha mãe, Fred Beer, ele foi meu pai de verdade", diz Angela.

Quando ele morreu, em 1979, Edith vendeu a casa e avisou à filha que estava de mudança para Israel. "Eu perguntei 'por que Israel agora?', você tem mais de 70 anos", lembra Angela. "Ela disse que era porque ao menos uma vez na vida queria viver entre judeus, em um país judaico." Edith morou sozinha em Netanya, na costa israelense, por quase 20 anos. Voltou para o Reino Unido após uma cirurgia cardíaca, para ficar perto da filha. Morreu em 2009, aos 95 anos. "Ela era boa em guardar segredos."

RAVENSBRÜCK

Em suas memórias, Edith recorda uma noite de 1943. Sozinha em seu apartamento em Brandemburgo —Vetter ainda não voltara do trabalho—, ela ficou tentada em sintonizar o rádio na BBC de Londres.

Um ano após a estrondosa derrota para os russos em Stalingrado, as tropas alemãs começavam a perder fôlego na guerra. As emissoras nazistas, porém, maquiavam o noticiário a fim de relatar um cenário positivo, ao gosto do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels.

Em uma "briga interna" consigo mesma, Edith afirma que "poderia acabar em Ravensbrück" se algum vizinho descobrisse que ela ouvia a rádio do inimigo. A menção a esse campo de concentração exclusivamente para mulheres pode passar despercebida, até por se dar logo após a lembrança de campos maiores e mais conhecidos no aparato de extermínio nazista, como Dachau e Buchenwald.

"Historiadores mais generalistas tendem a simplesmente ignorar o campo para mulheres porque ele era precisamente isso: um campo para mulheres e, portanto, de interesse menor", diz à Folha a jornalista britânica Sarah Helm, autora de "Ravensbrück", espécie de biografia do campo publicado pela editora Record em março.

Localizado a cerca de 80 km ao norte de Berlim, o local foi libertado pelos russos, o que o deixou por muitas décadas atrás da Cortina de Ferro, dificultando o acesso de pesquisadores e jornalistas ocidentais, lembra Helm.

Apesar de haver farta pesquisa acadêmica sobre o campo, pouco foi publicado para o público em geral. "As pesquisas buscam analisar e teorizar mas não tentam trazer à vida o campo, as personalidades das mulheres", avalia a jornalista.

Aberto em maio de 1939, o campo funcionou até os estertores da guerra, em 1945. 

Cerca de 130 mil mulheres foram prisioneiras lá —entre elas Olga Benário, a alemã que se casara com o comunista brasileiro Luís Carlos Prestes e foi entregue pelo governo Getúlio Vargas a Adolf Hitler em 1936.

Estima-se que entre 30 mil e 90 mil mulheres foram assassinadas em Ravensbrück nos meses finais da guerra, quando o campo foi convertido em local de extermínio.

"A história de mulheres, seu sofrimento e coragem é central para o Holocausto. Frequentemente as mulheres, e grupos como ciganos, testemunhas de Jeová, lésbicas e prisioneiros políticos, são excluídos do relato da atrocidade nazista. O trabalho sobre Ravensbrück ajuda a compensar esse desequilíbrio", afirma Helm, que se dedicou por quase dez anos à produção do livro.

A autora enxerga Ravensbrück como um "microcosmo" do Holocausto. "A ideia de aprisionar as 'bocas inúteis', a construção da sessão feminina em Auschwitz, o horror dos experimentos médicos, o envio de judias aos campos do leste, as marchas da morte e a instalação de uma câmara de gás no final, é tudo parte da história de Ravensbrück e da história mais ampla do Holocausto."