sexta-feira, 15 de agosto de 2025

'Os mais recentes absurdos do 8/1', por Cristyan Costa

Depois de punir autistas e ambulantes, o STF não poupa nem sequer um homem com hanseníase e uma idosa que usa andador para se locomover





Nesta terça-feira, 12, os Estados Unidos divulgaram um relatório com críticas ao governo Lula e ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No documento, os EUA afirmaram que a situação dos direitos humanos piorou no Brasil em 2024. Conforme os EUA, “os tribunais tomaram medidas amplas e desproporcionais para minar a liberdade de expressão”. Além disso, a Casa Branca disse que o STF “minou o debate democrático ao restringir o acesso a conteúdo on-line considerado ‘prejudicial à democracia’, suprimindo desproporcionalmente o discurso de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, assim como de jornalistas, veículos de mídia e políticos eleitos, com frequência em procedimentos secretos sem garantias do processo legal”. Mais, os EUA afirmaram que centenas de pessoas ficaram presas pelo 8 de janeiro “sem apresentação de evidências”. 

O relatório comprova o que Oeste vem noticiando desde 8 de janeiro de 2023. Ressalvada a minoria que destruiu as sedes dos Três Poderes, a maior parte das pessoas que esteve no protesto é inocente. Basta ver o perfil dos envolvidos: sexagenários doentes, autistas, mães solteiras, sorveteiros e até vendedores de algodão-doce. Todos não tiveram acesso ao devido processo legal, que envolve ampla defesa e julgamento na primeira instância. A cada dia que passa, a narrativa segundo a qual o Brasil testemunhou uma tentativa de golpe de Estado, há dois anos, não resiste aos fatos, sobretudo por causa dos elementos que vêm à tona conforme o julgamento prossegue. 

Crueldade sem fim no 8 de janeiro 

O disparate kafkiano mais recente de Moraes foi a condenação de outro “lote” de manifestantes. Entre eles, um homem de 47 anos que tem hanseníase (doença popularmente conhecida como lepra). Morador da capital federal, Davi Torres compareceu aos acampamentos montados nas cercanias do Quartel-General (QG) do Exército de Brasília para vender balas a fim de complementar a renda. Pai de seis filhos, separado, Torres tem de pagar pensão às crianças. Ele sobrevive graças a um valor que recebe de aposentadoria por invalidez. A situação financeira é tão delicada que Torres vive na casa da mãe por não ter condições de arcar com os custos de um aluguel. 

No dia seguinte ao quebra-quebra, ele foi detido pela polícia no QG e passou horas dentro de um ônibus com outras pessoas que nunca tinha visto na vida. Depois, foi levado para a Papuda. A enfermidade grave e infecciosa não o impediu de passar dois meses na cadeia, com outros 13 presos em uma cela pequena. Solto com tornozeleira eletrônica e medidas restritivas, tentou restabelecer a vida. O equipamento sempre o machucou a ponto de inchar a perna já coberta por feridas provocadas pela hanseníase, as quais coçam. Embora a defesa tenha informado isso a Moraes, o juiz do STF nunca autorizou a remoção do equipamento. O magistrado tampouco acolheu as justificativas dos advogados sobre violações. Em razão de tratar da doença em uma cidade-satélite do Distrito Federal (DF), volta e meia Torres acabava saindo da área de locomoção permitida pela Justiça. Por isso, em 16 de julho, o ministro mandou o homem de volta para a cadeia, apesar de a defesa reiterar suas explicações. 

“O requerente é portador de lepra (…) e ficou com sequelas graves, pois teve os membros das duas mãos amputados (dedos) e os demais dedos não dobram por causa das lesões que afetaram os nervos”, lembrou a defesa de Torres, na tentativa vã de libertar o homem.

“Por ser relativamente pobre, não tem condições financeiras de custear os tratamentos médicos nas redes privadas e, sempre que precisa, busca as unidades de saúde públicas do DF.” Pouco depois de a defesa descrever a situação deplorável de Torres, veio a condenação: um ano de detenção em prisão domiciliar pelo crime de associação criminosa (artigo 288, caput, do Código Penal), e multa de dez salários mínimos por incitação ao crime (artigo 286, parágrafo único, do Código Penal), por “estimular os militares a tomar o poder do país”.


Torres, portador de hanseníase, foi preso novamente por sair da rota médica — mesmo após laudos, pedidos da defesa e feridas agravadas pela tornozeleira. Moraes ignorou tudo | Foto: Arquivo pesso

A caneta do ministro também não poupou sequer mulheres idosas. Há pouco mais de um mês, Moraes revogou a prisão domiciliar da dona de casa Vildete Guardia, 74, também por supostas violações de cautelares. O magistrado ignorou o fato de a tornozeleira da mulher apresentar problemas técnicos. Condenada a 14 anos de prisão, ela cumpria a pena em sua residência e podia cuidar das doenças que tem em clínicas particulares. Desde que retornou à Penitenciária Feminina de Santana (SP), contudo, não conseguiu mais dar continuidade ao tratamento contra problemas neurológicos que desenvolveu nos nove primeiros meses que passou no regime fechado. Vildete também piorou da trombose, enfermidade que a obriga a se locomover de andador na cela que divide com uma presa comum. A produtora rural Paula Felipe, filha de Vildete, lamentou a situação. “Da primeira vez, devolveram a minha mãe em uma cadeira de rodas”, disse. “Ela teve episódios de incontinência urinária súbita, que estava sendo investigada, mas, agora, ficou tudo jogado pelo caminho. Não sei mais o que fazer.” 

Também a professora aposentada Iraci Nagoshi, 72, condenada a 14 anos de prisão, teve o regime domiciliar suspenso. Ela está na mesma cadeia em que se encontra Vildete. Diferentemente da dona de casa, Iraci dorme no chão e tem de conviver com outras cinco mulheres. “A situação é particularmente grave, considerando que a idosa se recuperava de uma cirurgia no fêmur e, mais recentemente, sofreu um deslocamento de cotovelo, o que reduziu drasticamente sua mobilidade e lhe causa dores intensas”, disse a defesa. 

“Preocupa ainda mais o fato de que, até o momento, nenhum tratamento de saúde adequado foi fornecido. Um retorno médico urgente para avaliar a lesão no cotovelo estava agendado para o dia 24 de julho de 2025, mas nenhuma providência foi tomada para garantir este atendimento crucial. A inação de Moraes e da Secretaria de Administração Penitenciária diante dessa emergência é inaceitável e põe em alto risco a vida de Iraci.”

A inação da Vara Penal do ministro tem prolongado o sofrimento de outra presa: Jucilene Nascimento, 62. Há tempos, os advogados requerem prisão domiciliar a fim de a aposentada poder cuidar da saúde em casa. No entanto, não têm sido ouvidos. Há poucas semanas, Jucilene foi espancada na cela por uma presa comum, depois de a detenta descobrir que a idosa esteve envolvida no 8 de janeiro. “A agressão resultou em lesão evidente na região do olho, configurando hematoma extenso, cuja gravidade impõe sérias preocupações quanto à segurança da apenada no ambiente prisional”, disseram os advogados. “O quadro evidencia falta de condições mínimas de segurança pessoal à custodiada, que vem convivendo com presas de alta periculosidade, estando, assim, exposta a riscos concretos de novas agressões e danos irreversíveis”.

Imagem de Jucilene, depois da agressão, cedida por seus advogados - Foto: Divulgação

Por isso, os advogados acionaram a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Representantes dos EUA. No documento, eles registraram as condições desumanas da cela na qual Jucilene se encontra. Além de água não potável e fria, ela tem de dormir em um colchão que “parece papel, de tão fino”, denunciou a defesa, que entrou com mais um pedido de prisão domiciliar no STF.

Sanções 

Nesta semana, alguns dias após o relatório dos EUA vir à tona, movimentos sociais e advogados levaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, um relatório minucioso a respeito das violações aos presos. Na peça, os signatários requereram medidas imediatas, entre elas o fim das prisões arbitrárias e a manifestação diplomática do órgão internacional para “cessar os abusos cometidos por Moraes, sob a omissão do Estado brasileiro e do governo”. 

É preciso repetir: nenhuma democracia se sustenta sobre a dor de inocentes atrás das grades. Justiça não se faz com humilhação, nem com vingança disfarçada de legalidade. Um país que se orgulha de ser livre não pode tolerar que o cárcere se torne palco de abusos. É hora de desmontar essa engrenagem que corrói a Justiça em nome dela própria.


Moraes é denunciado à OEA por abusos contra presos políticos; relatório exige fim das prisões arbitrárias e alerta para erosão da democracia | Foto: Antonio Augusto/STF

Cristyan Costa - Revista Oeste