Ele fez da releitura de textos uma forma de arte
U m assessor do presidente Baby Doc entrou na saleta do palácio para dar a má notícia aos três visitantes: a agenda congestionada impediria que os encontros individuais com o chefão do Haiti começassem no horário combinado. A jornalista italiana Oriana Fallaci, famosa pela competência e pelo temperamento beligerante, começou a rosnar palavrões na língua natal. O americano perguntou se seria possível calcular com alguma precisão o tempo do atraso. O brasileiro que completava o trio recolheu-se ao silêncio conformado de quem nasceu num país em que pontualidade é mania de inglês. Mais de uma hora depois, o mensageiro reapareceu decidido a testar os limites da paciência da trinca. Além de começarem com atraso, comunicou, as conversas haviam sido encurtadas de 15 para cinco minutos.
Aquilo foi demais para Oriana. “Vamos embora daqui!”, berrou. “E vamos já!”, ordenou a colérica líder do levante. O americano ergueuse, recolheu as tralhas e alcançou a líder do protesto ainda na porta de saída. O brasileiro preferiu esperar sentado que a poeira assentasse e o assessor lhe fizesse a pergunta mais que previsível: continuava interessado em conversar com Baby Doc? “Sim, com muito prazer”, respondeu já com caneta e papel nas mãos. “Eu estava lá para entrevistar o Baby Doc”, sorriu Guzzo quando lhe perguntei se a coisa fora mesmo daquele jeito. “Se tivesse tempo de sobra, ficaria mais simples”, admitiu. “Mas faria o que me mandaram fazer, mesmo que me dessem cinco minutos”.
Acompanhou com otimismo a retirada dos colegas de profissão. “Quando eles saíram, dez minutos ficaram sem dono”, animou-se. “Com sorte, poderia herdar aquele tempo”. Herdou. A conversa, aliás, passou de vinte. Os resultados foram dois. Um foi a impecável entrevista publicada pela revista Veja. E fortaleceu a suspeita surgida já no começo da carreira do maior jornalista brasileiro: certas coisas só aconteciam com J. R. Guzzo. Quem foi, por exemplo, o único passageiro a bordo do avião da Air France que, com tripulação completa e todos os requintes de praxe, inaugurou a rota Nanquim– Paris? Só podia ter sido aquele jovem correspondente internacional que começara a carreira na Última Hora de São Paulo, passara pelo Jornal da Tarde e preparava-se para fazer história na revista Veja. Ele mesmo: J. R. Guzzo.
Eu o vi pela primeira vez em 1973, quando Paulo Totti convidou-me a trabalhar na reportagem da revista. Aquele bando de inexperientes era uma espécie de categoria inferior, sem grandes chances de socorrer o time principal com revelações. Transferido pouco depois para a editoria geral, passei um tempão convencido de que jamais escreveria uma reportagem de capa. Era refinado demais. Mas essa temporada no purgatório deixou-me claro que, se efetivamente quisesse chegar lá, ao menos o destino facilitara as coisas quando me colocou ao lado dos que sabiam o que eu precisava aprender. E ninguém sabia ensinar com tanta clareza quanto J. R. Guzzo. “Um jornalista tem de saber separar fato e fantasia”, repetia. “É só jogar fora o que é falso e publicar a verdade”.
Para que Veja se tornasse a quarta maior revista de informações do planeta, Guzzo valeu-se de métodos ignorados por velhos donos de jornais. Entre 1976 e 1991, enquanto esteve no comando da publicação da Abril, as regras da meritocracia garantiram o poder de mando dos melhores e mais brilhantes. Se a qualidade do trabalho caísse quando o editor saía de férias, ouvia na volta o aviso: só inseguros incuráveis evitam ter como substitutos eventuais profissionais que mantenham a qualidade do produto. Se o nº 2 melhora o trabalho do chefe, este que tratasse de ganhar a saudável competição. Ou procurar emprego.
Foi também implantada a doutrina do último da fila. Nada complicado. Em qualquer grupo humano há melhores e piores, mais competentes ou menos competentes. Também é assim nas editorias dos veículos de comunicação. Convinha ao editor, portanto, permanecer atento ao que se passa no mercado de trabalho. Localizado algum profissional mais qualificado do que o último da fila, a substituição deve ser providenciada quanto antes. Tais requintes e rigores ajudam a entender a incrível trajetória desenhada pela Veja nos anos 1980.
Fiquei mais próximo de Guzzo e do diretor-adjunto Elio Gaspari a partir de 1982, quando fui promovido a redator-chefe. Com Elio, aprendi a caçar notícias com a obstinação dos pescadores de Hemingway. Com Guzzo, aprendi como deve ser um diretor de redação. Não haverá outro J. R. Guzzo, mas alguma coisa espero ter aprendido por ter visto em ação o gênio da escrita que, com retoques, inserções e cortes, elevou a revisão de um texto à categoria de arte. Alguns trabalhos de Guzzo mereciam ser exibidos em museus. Vários deles parecem inventados. São reais.
Num desses grandes momentos, Guzzo começou a reescrever com uma caneta, na parte em branco das páginas datilografadas, o que achava que podia ficar melhor no texto entregue por um bom jornalista de Economia. Mudou profundamente a primeira, alterou a segunda com entusiasmo crescente, intensificou os retoques na terceira e completou a obra de arte na quarta e última. Era outro texto, constatou Guzzo. Constrangido, perguntou ao autor do original: “Acho que você prefere deixar de assinar…”.
“Nem pense nisso”, replicou o discípulo. “Mantenha meu nome. Quero que acreditem que sou capaz de escrever como você”.
Augusto Nunes - Revista Oeste