Vergonha nossa que um presidente estrangeiro tenha que reagir ao desrespeito de direitos fundamentais de nossa Constituição, sem que tenha jurado defendê-la, como jurou o presidente do Brasil
S oberano é o país que tem uma Constituição respeitada. Soberano, civilizado e democrático. Fico imaginando, se o doutor Ulysses vivo fosse, o quanto estaria amaldiçoando os que juraram solenemente defender, cumprir e guardar a Constituição e fazem o contrário ou fingem que a Constituição está virgem, intocada, imaculada. Vergonha nossa que um presidente estrangeiro tenha que reagir ao desrespeito de direitos fundamentais de nossa Constituição, sem que tenha jurado defendê-la, como jurou o presidente do Brasil. Me doeu o coração quando vi e ouvi o expresidente José Sarney, que jurou diante do Congresso sobre a Bíblia defender a Constituição, e agora defende e se solidariza com quem descumpriu cláusulas pétreas, como a liberdade de expressão, o juiz natural, o amplo direito de defesa, a vedação à censura. Não se ouviu antes, do ex-presidente, palavra alguma denunciando o desrespeito à Constituição.
Não teríamos crise alguma se todos respeitassem a Lei Maior. Se a apuração fosse pública, como está no artigo 37, se os deputados e senadores fossem invioláveis por quaisquer palavras, se os direitos de ir e vir e reunião fossem intocáveis, se o Supremo só julgasse e não legislasse; se estivesse enquadrado na Constituição, o Brasil seria um Estado democrático de direito, resolvendo suas crises com base nas leis e não no arbítrio. “Não podemos correr atrás de um doido, devemos ficar mantendo a crença no regime democrático, que deve ser defendido pela Justiça e por todos nós” — disse Sarney, que acompanhou bem de perto na Constituinte a feitura de uma Constituição que garante direitos fundamentais.
O doutor Ulysses, que assombrou o presidente Sarney naquela época, talvez esteja de volta, repetindo no ouvido da memória de Sarney o seu discurso de promulgação da Magna Carta: “Quanto a ela (a Constituição), discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.” Terrível lembrança! Ou profecia? Esse Ulysses, sepultado nas águas, que ordene ao oceano que varra com suas ondas de ressaca os traidores da Constituição.
O primeiro pecado grave cometido contra a Constituição contou com votos e omissões de senadores, quando o julgamento de Dilma, presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski, rasgou ao meio o parágrafo único do art. 52 da Constituição, sem que houvesse a emenda constitucional correspondente. Rasgaram à força, para deixar a condenada elegível. Anos depois, a pretexto da pandemia, os direitos de reunião, de ir e vir, de trabalhar foram suprimidos. Eram testes para saber o quanto se poderia suprimir direitos do povo, o que equivale a suprimir poder do povo, a origem do poder que foi dado aos agentes do Estado. Aí surgiu o “inquérito do fim do mundo”, sem a iniciativa do Ministério Público, como manda a Constituição — e o inquérito serve para tudo, sob a mão pesada do relator Moraes. E aí, de novo, o Senado contribuiu para que a Constituição fosse ultrapassada pela força do arbítrio.
Agora tudo isso está no mundo. De Brasília para o mundo. Urbi et orbi. A pretexto de salvar a democracia, dilapidaram os princípios democráticos, enfraquecendo sua base, que é a liberdade de expressão. Vergonha no mundo inteiro entre as democracias. Alguns alegam que Trump ataca nossa soberania, mas não mostram soberania suficiente para defender a própria Constituição, a maior das leis, a que limita o poder do Estado para que a nação seja livre para pensar, debater, criticar, fiscalizar, eleger. Lamentável que tivesse que ser chamado o porta-aviões USS Magnitsky. Deve ter sido o desespero, porque aqui as instituições não foram capazes de usar os instrumentos previstos na Constituição para manter funcionando os fundamentos de uma democracia.
A Lei Magnitsky, sancionada por Obama, veio para punir estrangeiros por agressões a direitos humanos. O advogado russo Sergei Magnitsky ficou preso para arrancarem dele confissões sobre fatos que não existiram, como fizeram com Filipe Martins e Mauro Cid, e Sergei acabou morrendo na prisão, tal como Clezão. A semelhança não é mera coincidência. A Magnitsky apenas começou com Moraes, como sugerem os secretários do Tesouro e de Estado. O porta-aviões está no Lago Paranoá. E já não dá para retirá-lo das proximidades do Supremo, como foi feito com o deputado Hélio Lopes, o Hélio Negão.
Alexandre Garcia - Revista Oeste