A trilha que leva ao penhasco chegou ao fim
E m sua coluna no Diário Popular, o jornalista Aristides Lobo, militante do Partido Republicano, constatou no penúltimo mês de 1889 que os históricos acontecimentos daquele dia destinado a mudar a história se consumaram sob o olhar entediado da imensa maioria da população brasileira. “Eu quisera poder dar a esta data a denominação seguinte: 5 de Novembro, primeiro ano da República, mas não posso infelizmente fazê-lo”, rendeu-se já no primeiro parágrafo. “O que se fez foi um degrau, talvez nem tanto, para o advento da grande era. Em todo o caso, o que está feito pode ser muito se os homens que vão tomar o poder tiverem juízo, patriotismo e sincero amor à liberdade. Por ora, a cor do governo é puramente militar. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava”.
Ministro do Interior do governo provisório comandado pelo marechal Deodoro da Fonseca, Aristides Lobo ficou no cargo apenas dois meses, consumidos em desentendimentos com o primeiro presidente da República. Era senador quando morreu em 1896, convencido de que, em quase todos os principais momentos da trajetória do país, foi o povo o grande ausente. É difícil entender o espanto de Aristides Lobo. Sempre diminuta e bestializada, a mesmíssima plateia reduzira a fracasso de público a chegada da Família Real Portuguesa, a promoção da colônia a reino, o Grito do Ipiranga e o regresso de Pedro I a Lisboa, que instalou no trono do Brasil um menino de 5 anos sem pai nem mãe.
O herdeiro perplexo nunca entendeu por que se tornara rei quando mal aprendera a falar e teve a coroação antecipada sem saber cortar a barba direito. Tampouco compreendeu por que foi demitido depois de 50 anos no poder sem que qualquer conspiração de bom tamanho tentasse derrubá-lo. Também por isso, ficou perplexo ao ouvir o ultimato: tinha um punhado de horas para cair fora do Rio e do Brasil.
Ao subir na embarcação que o levaria ao navio escalado para devolvêlo à Europa, o monarca despejado mirou um por um os integrantes da escolta e resumiu o que achava do modo brasileiro de criar república: — Os senhores são uns doidos. Com a independência vieram as eleições sem riscos para os preferidos do imperador (e dos homens livres). Mais do que votar, os nativos sempre gostaram de impedir que outros votassem. Mulheres e analfabetos só veriam uma urna de perto em meados do século 20.
O voto não era secreto.
Nos tempos da colônia e do império, a fraude era favorecida pelo voto por procuração, que permitia transferir para outro vivente o direito de escolher o candidato. Como o título de eleitor não existia, a identificação costumava ficar a cargo de mesários e transeuntes. Muita eleição no Brasil foi decidida por batalhões de mortos, crianças e moradores das cidades vizinhas. A pilha de restrições sobreviveu à Proclamação da República.
Continuaram longe das seções eleitorais — muitas delas instaladas na varanda do casarão do chefão do lugar — menores de 21 anos, analfabetos, mendigos, soldados rasos, indígenas e integrantes do clero. Todas as eleições promovidas na República Velha foram fraudadas. Já entre 1930 e 1945, com Getúlio Vargas no poder, quase não se ouviu conversa. Houve denúncias de safadezas nas urnas. É que só havia eleição de vez em quando.
Entre o fim do Estado Novo e o começo do regime militar de 1964, o Brasil pareceu mais próximo da maturidade. Algumas siglas ficaram com feições de partido, líderes bons de discurso ampliaram sensivelmente as plateias dos comícios e manifestações impressionantes começaram a ameaçar uma antiga certeza: só se vê uma multidão de brasileiros nas ruas antes da saída do bloco carnavalesco ou depois de encerrado um jogão de futebol. Em 1983, tal sensação foi reforçada pelas manifestações da campanha das Diretas Já. Nunca se verá nada igual, imaginou a frente de políticos unidos no palanque. Rejeitada a emenda que ressuscitava a eleição direta do presidente da República, o país dos bestializados voltou ao normal, certo?
Errado, descobririam homens, mulheres, crianças, adolescentes, sessentões e nonagenários em junho de 2013. O primeiro ato de protesto exigia a revogação do aumento de 20 centavos nas tarifas de transporte. Exageros repressivos da PM elevaram a temperatura. De repente, uma palavra de ordem alertou: “Não é só pelos 20 centavos”. Nos dias seguintes, mobilizações sem precedentes se multiplicaram por mais de 500 municípios. Os próprios militantes pareciam ignorar os motivos da explosão de raiva, cansaço: a paciência acabara. Sobretudo a paciência com os corruptos, com a paralisante estupidez do governo Dilma, com a insolência dos ladrões federais. A gestação da Operação Lava Jato começou em 2013.
A queda de Dilma também. Naquele ano, milhões de brasileiros recuperaram o domínio das ruas, das praças, de todos os espaços urbanos. Faz tempo que sonham com a ressurreição das leis assassinadas, começando pelo artigo 1 da Constituição Brasileira. Nesta semana, a mão do imponderável ergueu-se na Casa Branca e alcançou a Praça dos Três Poderes. A contraofensiva ensaiada pelo Super Carcereiro esbarrou na dissidência: quatro ministros, convencidos de que Moraes foi longe demais, não compareceram ao jantar organizado por Lula. Os sete restantes logo saberão que chegou ao fim a trilha que leva ao penhasco. Não custa avisar que toga não é asa delta.
Milhares de manifestantes marcham até a prefeitura do Rio de Janeiro para protestar contra o governo, no Rio de Janeiro, Brasil (20/6/2013) - Foto: Antonio Scorza/Shutterstock
Auguato Nunes - Revista Oeste