Na história recente do Brasil, poucos casos têm capturado a atenção pública como o de Filipe G. Martins, ex-assessor internacional do expresidente Jair Bolsonaro
P reso em fevereiro de 2024, enfrentando meses de uma prisão preventiva ilegal e agora em prisão domiciliar em Ponta Grossa, Paraná, Martins tornou-se um símbolo de resistência em um cenário de intensas disputas políticas e jurídicas. Sua trajetória, marcada por acusações infundadas e uma luta incansável pela verdade, levanta questões profundas sobre justiça, liberdade e o papel dos indivíduos em moldar a história.
O Brasil da última década tem sido palco de uma polarização que ecoa momentos críticos da história da humanidade. Filipe Martins, acusado de integrar o chamado “núcleo jurídico” de uma falsa tentativa de golpe de Estado em 2022, está no epicentro de um debate que transcende sua figura: até onde a justiça pode ser instrumentalizada para fins políticos? Sua prisão preventiva, fundamentada em registros fraudulentos no sistema de imigração dos Estados Unidos, remete a episódios históricos em que acusações frágeis foram usadas para silenciar dissidentes e forçar delações, como durante a Inquisição ou nos julgamentos políticos dos regimes totalitários do século 20.
Nesta semana, o The Wall Street Journal deu um passo importante e trouxe o caso de Filipe à atenção global, expondo o que a Revista Oeste tem questionado há mais de um ano: a validade dos registros do Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP).
A defesa de Filipe já provou que tais documentos são falsos, apontando para uma possível manipulação de informações. Esse cenário nos remete a momentos históricos em que a verdade foi distorcida para servir a interesses de poder, como as perseguições políticas durante o regime de Stalin na União Soviética. A história de Martins já é maior que ele próprio — suas páginas se tornam um lembrete de que a luta pela verdade permanece atual e necessária. E a coragem, a virtude que antecede todas as outras.
A importância dos heróis para o espírito humano
Heróis são mais do que figuras lendárias; são pilares do espírito humano, guiando sociedades em tempos de crise e incerteza. Na cultura americana, essa valorização é profundamente enraizada. Abraham Lincoln, que conduziu os Estados Unidos pela Guerra Civil para abolir a escravidão, é celebrado como um símbolo de união e justiça. Martin Luther King Jr., com sua luta não violenta pelos direitos civis, inspirou milhões a combater a desigualdade com dignidade e coragem. Nomes grandiosos ou soldados desconhecidos do Dia D na Segunda Guerra Mundial permeiam o imaginário coletivo e fortalecem os heróis de nossas vidas — pais, professores, técnicos de equipes esportivas e mentores. Esses heróis são elevados em estátuas, feriados e narrativas culturais, servindo como faróis que orientam a nação em direção a seus ideais mais sublimes. Mas são os Filipes do dia a dia que trazem o símbolo do heroísmo para o cotidiano, conectando-nos a algo que raramente conseguimos ver, mas que chega a ser palpável diante de sua necessidade.
Para o espírito humano, heróis transcendem fronteiras culturais. Eles representam a capacidade de indivíduos comuns de enfrentarem sistemas opressores, desafiarem injustiças e inspirarem mudanças duradouras. Em contextos de crise, como guerras, ditaduras ou crises democráticas, heróis oferecem esperança e um senso de propósito.
Por que o Brasil precisa de heróis como Filipe Martins?
No Brasil, a ausência de uma cultura de celebração de heróis domésticos é uma lacuna que enfraquece a identidade nacional. Figuras como José Bonifácio, Duque de Caxias ou os corajosos pracinhas que ajudaram a derrotar o nazismo na Europa são frequentemente relegadas a notas de rodapé em livros didáticos ou narrativas oficiais que priorizam visões centralizadas do poder. Diferentemente dos Estados Unidos, onde heróis famosos ou desconhecidos são enaltecidos em filmes, séries e celebrações públicas, o Brasil carece de um hábito cultural de elevar suas figuras inspiradoras, deixando gerações sem modelos de resiliência e integridade.
Essa ausência cultural não é trivial. Heróis locais são essenciais para forjar um senso de pertencimento e orgulho nacional. Orgulho por fazer a coisa certa. Eles inspiram jovens a questionar o status quo, incentivam a sociedade a refletir sobre seus valores e fortalecem a democracia ao lembrar que indivíduos podem fazer a diferença.
Filipe Martins surge como o herói de que o Brasil precisa em um momento de escuridão e covardia: um homem que, enfrentando acusações falsas e abusos de poder, mantém-se firme em sua luta pela verdade sem cometer injustiças contra outras pessoas para se livrar de seu carrasco. Elevar sua história não é apenas uma questão de justiça individual, mas um passo para construir um caminho em nosso país que valorize suas vozes de resistência, altivez e dignidade, reacendendo o patriotismo ético de que o Brasil tanto necessita.
Filipe Martins enfrentou adversidades que testariam a força de qualquer pessoa. Preso injustamente por seis meses, seus algozes tinham em mente a coação para uma delação — e a criação de uma história que nunca existiu para tentar comprometer Jair Bolsonaro. Sua detenção foi marcada por abusos graves: dez dias em confinamento em uma solitária sem acesso à luz natural e torturas psicológicas destinadas a forçar uma confissão de crimes que ele já provou não ter cometido.
Essas condições, que violam direitos humanos básicos e ecoam práticas de regimes autoritários, foram denunciadas por sua defesa e por testemunhas do sistema prisional, incluindo a dra. Stella Burda, Corregedora de Presídios de Curitiba, que confirmou em depoimento que esteve no presídio em junho de 2024 e colheu relatos de internos, carcereiros e equipe de segurança que confirmaram que Filipe Martins foi submetido a isolamento em solitária sem iluminação e ficou mais de 70 dias proibido de receber visitas da esposa, além de ter sofrido perseguições.
Apesar disso, Martins permanece inabalável. Na audiência de seu núcleo conduzida na semana passada, Filipe foi ouvido pela primeira vez em dois anos e disse, para total desespero do atual regime no Brasil:
“Quando eu ia conversar com o Presidente (Bolsonaro), tudo o que eu via era um homem preocupado com o Brasil. Jamais, jamais, eu me dignaria a falar mentiras contra um homem que eu jamais vi fazer coisa errada, que teve a vida toda revirada, processo após processo tem sido engavetado, tem sido arquivado, porque não encontram nada. Então, eu jamais me dignaria a fazer isso (delatar) e deixei de forma muito clara: não delatei, não irei delatar e não fiz isso porque não há o que delatar. E eu não falarei mentiras. Não falarei nada que possa causar injustiça ao presidente, a outras pessoas, a quem quer que seja. Eu preferia, como prefiro até hoje, sofrer uma injustiça do que ser injusto com outra pessoa — porque isso é o que importa. Eu não respondo apenas à minha consciência. Respondo também a Deus e sei que prestarei contas dessas coisas.”
A integridade contra o poder
A trajetória de Filipe Martins encontra um eco poderoso em um clássico do cinema: O Homem Que Não Vendeu Sua Alma (A Man for All Seasons, 1966). Paul Scofield, com sua atuação magistral, dá vida a Thomas More, o chanceler inglês que enfrentou o rei Henrique VIII ao recusar sancionar seu divórcio, escolhendo a consciência acima da lealdade ao poder.
Em uma cena inesquecível, More, pressionado por Thomas Cromwell (Leo McKern) a assinar um juramento que trairia seus princípios, responde com serena determinação:
— Eu sou um servo do rei, mas de Deus primeiro. Essa declaração, carregada de convicção, marca sua lealdade à verdade acima do poder. Mais tarde, em seu julgamento final, More eleva ainda mais sua voz, afirmando:
— Não traí meu juramento, mas mantive minha alma.
Essa recusa em ceder, mesmo enfrentando a prisão e a execução, cristaliza o heroísmo de More — um homem que escolheu a integridade acima da sobrevivência. Como More, Filipe Martins resiste a um sistema que o pressiona com acusações infundadas e abusos cruéis, sob tortura psicológica para forçar uma confissão falsa. Sua recusa em ceder a narrativas fabricadas, apesar do sofrimento, espelha a coragem de More, transformando-o em um símbolo vivo de resistência.
Essa comparação transcende o tempo: é um chamado tátil para que o Brasil abra os olhos diante das ações além do homem, cuja luta por justiça reacende a esperança, provando que a retidão, como a de More, pode iluminar os caminhos mais escuros e inspirar uma nação a erguer-se com dignidade.
O caso de Filipe Martins, ainda em andamento, desafia-nos a olhar além das manchetes e a reconhecer o poder transformador dos indivíduos. Sua luta por justiça, em um contexto de polarização e manipulação de informações, é um convite para que o Brasil redescubra seus heróis. Assim como Lincoln, King ou More, mesmo Martins representa a possibilidade de mudança em tempos turbulentos — diante da tempestade, a oportunidade para aprender a lutar, navegar, sobreviver e passar a força adiante.
Filipe Martins, com sua coragem e resiliência, está escrevendo um capítulo singular na história do Brasil. Os autos mostrarão a corrupção do poder. Mas nossas páginas mostrarão sua jornada, a dos heróis, que não nascem apenas em campos de batalha ou em narrativas épicas; mas em celas escuras, nos tribunais injustos, nas ruas e nas lutas diárias por dignidade. Como Thomas More em O Homem Que Não Vendeu Sua Alma,
Filipe nos conecta a uma rara integridade nos dias de hoje e finca, no árido solo de nossos dias, que a retidão ainda é a maior arma contra a tirania. Certa vez, durante um momento de desafio para os Estados Unidos, nos anos 1980, uma outra figura heroica, Ronald Reagan, proferiu uma frase que entrelaça a era da Guerra Fria com os dias atuais. Reagan utilizou-a para inspirar seus compatriotas a agirem com responsabilidade e a honrarem a confiança que lhes fora depositada pelo destino:
“Há um poema americano que diz que a humanidade, com todos os seus medos e todas as suas esperanças, depende de nós. Acredito que foi uma confiança que nos foi dada que jamais devemos trair. É essa responsabilidade que enfrentamos hoje. O futuro não pertence aos fracos de coração, pertence aos corajosos.”
O Brasil ainda tem jeito. O Brasil ainda tem heróis.
Obrigado, Filipe.
Ana Paula Henkel - Revista Oeste