sexta-feira, 1 de agosto de 2025

'A jornada do herói', por Ana Paula Henkel

Na história recente do Brasil, poucos casos têm capturado a atenção pública como o de Filipe G. Martins, ex-assessor internacional do expresidente Jair Bolsonaro


Foto: Shutterstock 


P reso em fevereiro de 2024, enfrentando meses de uma prisão preventiva ilegal e agora em prisão domiciliar em Ponta Grossa, Paraná, Martins tornou-se um símbolo de resistência em um cenário de intensas disputas políticas e jurídicas. Sua trajetória, marcada por acusações infundadas e uma luta incansável pela verdade, levanta questões profundas sobre justiça, liberdade e o papel dos indivíduos em moldar a história. 

O Brasil da última década tem sido palco de uma polarização que ecoa momentos críticos da história da humanidade. Filipe Martins, acusado de integrar o chamado “núcleo jurídico” de uma falsa tentativa de golpe de Estado em 2022, está no epicentro de um debate que transcende sua figura: até onde a justiça pode ser instrumentalizada para fins políticos? Sua prisão preventiva, fundamentada em registros fraudulentos no sistema de imigração dos Estados Unidos, remete a episódios históricos em que acusações frágeis foram usadas para silenciar dissidentes e forçar delações, como durante a Inquisição ou nos julgamentos políticos dos regimes totalitários do século 20. 


Filipe Martins, assessor especial da Presidência da República, durante palestra no Instituto Rio Branco – 9/5/2019 | Foto: Arthur Max/MRE 


Nesta semana, o The Wall Street Journal deu um passo importante e trouxe o caso de Filipe à atenção global, expondo o que a Revista Oeste tem questionado há mais de um ano: a validade dos registros do Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP). 

A defesa de Filipe já provou que tais documentos são falsos, apontando para uma possível manipulação de informações. Esse cenário nos remete a momentos históricos em que a verdade foi distorcida para servir a interesses de poder, como as perseguições políticas durante o regime de Stalin na União Soviética. A história de Martins já é maior que ele próprio — suas páginas se tornam um lembrete de que a luta pela verdade permanece atual e necessária. E a coragem, a virtude que antecede todas as outras. 

A importância dos heróis para o espírito humano 

Heróis são mais do que figuras lendárias; são pilares do espírito humano, guiando sociedades em tempos de crise e incerteza. Na cultura americana, essa valorização é profundamente enraizada. Abraham Lincoln, que conduziu os Estados Unidos pela Guerra Civil para abolir a escravidão, é celebrado como um símbolo de união e justiça. Martin Luther King Jr., com sua luta não violenta pelos direitos civis, inspirou milhões a combater a desigualdade com dignidade e coragem. Nomes grandiosos ou soldados desconhecidos do Dia D na Segunda Guerra Mundial permeiam o imaginário coletivo e fortalecem os heróis de nossas vidas — pais, professores, técnicos de equipes esportivas e mentores. Esses heróis são elevados em estátuas, feriados e narrativas culturais, servindo como faróis que orientam a nação em direção a seus ideais mais sublimes. Mas são os Filipes do dia a dia que trazem o símbolo do heroísmo para o cotidiano, conectando-nos a algo que raramente conseguimos ver, mas que chega a ser palpável diante de sua necessidade. 

Para o espírito humano, heróis transcendem fronteiras culturais. Eles representam a capacidade de indivíduos comuns de enfrentarem sistemas opressores, desafiarem injustiças e inspirarem mudanças duradouras. Em contextos de crise, como guerras, ditaduras ou crises democráticas, heróis oferecem esperança e um senso de propósito.


Martin Luther King Jr., com sua luta não violenta pelos direitos civis, inspirou milhões a combater a desigualdade com dignidade e coragem | Foto: Shutterstock

Por que o Brasil precisa de heróis como Filipe Martins? 

No Brasil, a ausência de uma cultura de celebração de heróis domésticos é uma lacuna que enfraquece a identidade nacional. Figuras como José Bonifácio, Duque de Caxias ou os corajosos pracinhas que ajudaram a derrotar o nazismo na Europa são frequentemente relegadas a notas de rodapé em livros didáticos ou narrativas oficiais que priorizam visões centralizadas do poder. Diferentemente dos Estados Unidos, onde heróis famosos ou desconhecidos são enaltecidos em filmes, séries e celebrações públicas, o Brasil carece de um hábito cultural de elevar suas figuras inspiradoras, deixando gerações sem modelos de resiliência e integridade. 

Essa ausência cultural não é trivial. Heróis locais são essenciais para forjar um senso de pertencimento e orgulho nacional. Orgulho por fazer a coisa certa. Eles inspiram jovens a questionar o status quo, incentivam a sociedade a refletir sobre seus valores e fortalecem a democracia ao lembrar que indivíduos podem fazer a diferença.


Filipe Martins surge como o herói de que o Brasil precisa em um momento de escuridão e covardia: um homem que, enfrentando acusações falsas e abusos de poder, mantém-se firme em sua luta pela verdade sem cometer injustiças contra outras pessoas para se livrar de seu carrasco. Elevar sua história não é apenas uma questão de justiça individual, mas um passo para construir um caminho em nosso país que valorize suas vozes de resistência, altivez e dignidade, reacendendo o patriotismo ético de que o Brasil tanto necessita.


Filipe Martins enfrentou adversidades que testariam a força de qualquer pessoa. Preso injustamente por seis meses, seus algozes tinham em mente a coação para uma delação — e a criação de uma história que nunca existiu para tentar comprometer Jair Bolsonaro. Sua detenção foi marcada por abusos graves: dez dias em confinamento em uma solitária sem acesso à luz natural e torturas psicológicas destinadas a forçar uma confissão de crimes que ele já provou não ter cometido. 

Essas condições, que violam direitos humanos básicos e ecoam práticas de regimes autoritários, foram denunciadas por sua defesa e por testemunhas do sistema prisional, incluindo a dra. Stella Burda, Corregedora de Presídios de Curitiba, que confirmou em depoimento que esteve no presídio em junho de 2024 e colheu relatos de internos, carcereiros e equipe de segurança que confirmaram que Filipe Martins foi submetido a isolamento em solitária sem iluminação e ficou mais de 70 dias proibido de receber visitas da esposa, além de ter sofrido perseguições.


Filipe Martins foi submetido a isolamento em solitária sem iluminação e ficou mais de 70 dias proibido de receber visitas da esposa, além de ter sofrido perseguições | Foto: Shutterstock

Apesar disso, Martins permanece inabalável. Na audiência de seu núcleo conduzida na semana passada, Filipe foi ouvido pela primeira vez em dois anos e disse, para total desespero do atual regime no Brasil: 

“Quando eu ia conversar com o Presidente (Bolsonaro), tudo o que eu via era um homem preocupado com o Brasil. Jamais, jamais, eu me dignaria a falar mentiras contra um homem que eu jamais vi fazer coisa errada, que teve a vida toda revirada, processo após processo tem sido engavetado, tem sido arquivado, porque não encontram nada. Então, eu jamais me dignaria a fazer isso (delatar) e deixei de forma muito clara: não delatei, não irei delatar e não fiz isso porque não há o que delatar. E eu não falarei mentiras. Não falarei nada que possa causar injustiça ao presidente, a outras pessoas, a quem quer que seja. Eu preferia, como prefiro até hoje, sofrer uma injustiça do que ser injusto com outra pessoa — porque isso é o que importa. Eu não respondo apenas à minha consciência. Respondo também a Deus e sei que prestarei contas dessas coisas.”


A integridade contra o poder 

A trajetória de Filipe Martins encontra um eco poderoso em um clássico do cinema: O Homem Que Não Vendeu Sua Alma (A Man for All Seasons, 1966). Paul Scofield, com sua atuação magistral, dá vida a Thomas More, o chanceler inglês que enfrentou o rei Henrique VIII ao recusar sancionar seu divórcio, escolhendo a consciência acima da lealdade ao poder. 

Em uma cena inesquecível, More, pressionado por Thomas Cromwell (Leo McKern) a assinar um juramento que trairia seus princípios, responde com serena determinação: 

— Eu sou um servo do rei, mas de Deus primeiro. Essa declaração, carregada de convicção, marca sua lealdade à verdade acima do poder. Mais tarde, em seu julgamento final, More eleva ainda mais sua voz, afirmando:

— Não traí meu juramento, mas mantive minha alma. 

Essa recusa em ceder, mesmo enfrentando a prisão e a execução, cristaliza o heroísmo de More — um homem que escolheu a integridade acima da sobrevivência. Como More, Filipe Martins resiste a um sistema que o pressiona com acusações infundadas e abusos cruéis, sob tortura psicológica para forçar uma confissão falsa. Sua recusa em ceder a narrativas fabricadas, apesar do sofrimento, espelha a coragem de More, transformando-o em um símbolo vivo de resistência. 

Essa comparação transcende o tempo: é um chamado tátil para que o Brasil abra os olhos diante das ações além do homem, cuja luta por justiça reacende a esperança, provando que a retidão, como a de More, pode iluminar os caminhos mais escuros e inspirar uma nação a erguer-se com dignidade. 

O caso de Filipe Martins, ainda em andamento, desafia-nos a olhar além das manchetes e a reconhecer o poder transformador dos indivíduos. Sua luta por justiça, em um contexto de polarização e manipulação de informações, é um convite para que o Brasil redescubra seus heróis. Assim como Lincoln, King ou More, mesmo Martins representa a possibilidade de mudança em tempos turbulentos — diante da tempestade, a oportunidade para aprender a lutar, navegar, sobreviver e passar a força adiante. 

Filipe Martins, com sua coragem e resiliência, está escrevendo um capítulo singular na história do Brasil. Os autos mostrarão a corrupção do poder. Mas nossas páginas mostrarão sua jornada, a dos heróis, que não nascem apenas em campos de batalha ou em narrativas épicas; mas em celas escuras, nos tribunais injustos, nas ruas e nas lutas diárias por dignidade. Como Thomas More em O Homem Que Não Vendeu Sua Alma, 

Filipe nos conecta a uma rara integridade nos dias de hoje e finca, no árido solo de nossos dias, que a retidão ainda é a maior arma contra a tirania. Certa vez, durante um momento de desafio para os Estados Unidos, nos anos 1980, uma outra figura heroica, Ronald Reagan, proferiu uma frase que entrelaça a era da Guerra Fria com os dias atuais. Reagan utilizou-a para inspirar seus compatriotas a agirem com responsabilidade e a honrarem a confiança que lhes fora depositada pelo destino: 

“Há um poema americano que diz que a humanidade, com todos os seus medos e todas as suas esperanças, depende de nós. Acredito que foi uma confiança que nos foi dada que jamais devemos trair. É essa responsabilidade que enfrentamos hoje. O futuro não pertence aos fracos de coração, pertence aos corajosos.”

O Brasil ainda tem jeito. O Brasil ainda tem heróis. 

Obrigado, Filipe. 









Ana Paula Henkel - Revista Oeste