Ao enquadrarem Alexandre de Moraes na Lei Magnitsky, EUA mostraram para o mundo quem é o ministro da Suprema Corte que não tinha limites até quarta-feira, 30 de julho de 2025
N a última quarta-feira, 30, pela primeira vez na história, os Estados Unidos da América decidiram punir um integrante do Judiciário de um país que se apresenta como democracia constitucional no Ocidente. Aconteceu no Brasil. O ministro Alexandre de Moraes, integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), foi sancionado pela severa Lei Magnitsky (Magnitsky Act, em vigor desde 2012), por violações de direitos humanos.
Não há mais tempo nem caminhos para relativizar o que ocorreu no Brasil: os Estados Unidos entenderam que Alexandre de Moraes cruzou linhas inegociáveis. Para a Casa Branca, o ministro do STF não é um democrata. Perseguiu quem não aceita o retorno ao poder de condenados por corrupção, prendeu e aplicou penas injustas a cidadãos comuns — como 15 ou 17 anos de cadeia, algo que integrantes de facções criminosas não cumprem no Brasil — e, sobretudo, resgatou a censura num país que havia se despedido dela a muito custo, em 1979, com a Lei da Anistia (Lei nº 6.683). O governo americano investigou e recolheu provas durante meses — algumas ainda não vieram à luz do noticiário, mas virão — de que Moraes, comprovadamente, deteriorou uma democracia jovem, mas que funcionava. Pior: ele agiu à margem da lei, contra cidadãos e empresas americanas — inclusive, com bloqueio de ativos, como no caso da Starlink e a suspensão da rede X.
Um detalhe não pode ser deixado de lado neste momento histórico do país: tudo isso foi previamente avisado e documentado pelo presidente Donald Trump em comunicados oficiais. Ou seja, o governo brasileiro, o Congresso Nacional e os outros dez ministros do STF tiveram tempo para freá-lo antes das sanções impostas ao país. Mas ninguém agiu. Por quê?
Algumas respostas são possíveis: Alexandre de Moraes é o resultado de uma fórmula pensada para governar o país à força. Há seis anos, o então presidente do Supremo, Dias Toffoli, já sabia dessa missão. Foi ele quem escolheu o xerife que comandaria a mais implacável perseguição desde a Constituição de 1988, para impedir a ascensão de um grupo que despertou a direita brasileira. Uma parte da crônica política, aliás, insiste em chamar de “extrema-direita”, outros de “bolsonarismo”, porque não aceitam o protagonismo do ex-presidente Jair Bolsonaro — recentemente censurado por Alexandre de Moraes.
Antes de tratar das sanções dos Estados Unidos, é importante lembrar que tudo isso começou com um inquérito que leva o número 4.781 no STF. Foi ali que tudo começou. O inquérito foi aberto de ofício há mais de seis anos, sem a provocação natural do Ministério Público e sem sorteio de relator. Quem narrou em detalhes essa história foi o exministro do STF Marco Aurélio Mello, que passou 31 anos na Corte. Ele cita a seguinte cena: era o decano da Corte e conversou com Toffoli num jantar na casa de Barroso. Toffoli contou o que estava fazendo: “Sei que o senhor não vai concordar. Determinei, mediante portaria, a instauração de um inquérito e designei o relator”. A informação foi revelada na edição 206 de Oeste.
Marco Aurélio Mello ainda disse na entrevista: “Desde o início, com desassombro, classifiquei o primeiro procedimento como ‘inquérito do fim do mundo’. Perceba que Toffoli nem sequer sorteou o caso, mas, sim, escolheu o seu condutor, o ministro Alexandre de Moraes. A situação é tão delicada que a procuradora-geral da República da época, Raquel Dodge, pediu o arquivamento”. Na última quinta-feira, 31, depois da confirmação da Lei Magnitsky, além da proibição de vistos para a maioria dos togados, Marco Aurélio disse em outra entrevista: “A história será impiedosa com a postura atual do STF”.
O inquérito 4.781 deu origem a duas dezenas de investigações tentaculares. Em janeiro deste ano, o jornal O Estado de S. Paulo informou que o gabinete de Moraes conduz 21 dos 37 inquéritos abertos na Corte. O jornal, contudo, alertou: “Não estão contabilizados os casos sigilosos e em segredo de Justiça. Portanto, o número é maior do que o indicado pelos dados oficiais. Moraes não quis se manifestar”. Dezenas de advogados já se queixaram publicamente de que essas investigações se conectam de forma secreta e que ninguém sabe onde buscar informações sobre apurações em curso.
A outra parte da resposta para a crise institucional pode ser explicada numa simples fotografia, registrada na quarta-feira, 30, dia em que Moraes foi oficialmente colocado numa lista de criminosos russos que violam direitos humanos, ao lado de terroristas do Oriente Médio e de integrantes de gangues do Haiti. Ele estava na plateia de um jogo de futebol em São Paulo. Reagiu a uma vaia ou a meia dúzia de xingamentos com um gesto obsceno. É aceitável um ministro da última Corte recursal do país bater boca num estádio de futebol? Mas é justamente essa imagem que diz muito sobre ele.
Ana Paula Henkel - Apenas imaginem qualquer juiz da Suprema Corte dos EUA, qualquer um, apontado por republicanos ou democratas, progressistas ou conservadores, fazendo esse gesto e se comportando dessa maneira. Jamais. Jamais. Alexandre de Moraes é a cara e os gestos de suas decisões O comportamento no estádio do Corinthians não foi o único exemplo de que o ministro não tem limites — aliás, há muito tempo. Na semana passada, ele mandou desmontar barracas montadas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, onde políticos estavam acampados. Independentemente da reivindicação, esse tipo de manifestação espontânea ocorre desde que Brasília existe — com sindicalistas, índios, o MST etc. Brasília já foi palco de todo tipo de bagunça. Mas Alexandre de Moraes não quer manifestações de direita no Brasil.
A cena que rodou o país mostra o deputado Hélio Lopes (PL-RJ) sentado numa cadeira, com a Bíblia à mão e uma fita adesiva na boca, em sinal de protesto. Moraes proferiu um despacho no âmbito de um inquérito sigiloso e determinou que a cabana fosse retirada de lá, numa ordem enviada ao governador do Distrito Federal. Argumentou que algo poderia remeter ao tumulto do 8 de janeiro de 2023. Mais: escreveu um despacho com letras em caixa alta, várias exclamações e citou Adolf Hitler.
Babel jurídica
O ato mais recente de Moraes na coleção de sentenças atabalhoadas — e raivosas pós-sanções de Trump — foi a tentativa de calar Jair Bolsonaro nas redes sociais. Após determinar que o ex-presidente usasse uma tornozeleira eletrônica para não fugir do país — o que seria impossível, já que seu passaporte foi recolhido há meses —, ele disse que o ex-presidente poderia conceder entrevistas, mas quer que o conteúdo não chegue às redes sociais.
Em 2025, como seria possível impedir que algo não chegue às redes sociais? Aos números: o Brasil é o segundo país do mundo em que os usuários passam mais tempo na internet: 9 horas, em média, atrás da África do Sul. São 188 milhões de pessoas em frente a um computador ou com um celular à mão (86% da população), segundo um levantamento da We Are Social e Meltwater (Digital 2024: 5 bilhões de usuários de redes sociais).
Brasil é o segundo país do mundo em que os usuários passam mais tempo na internet: 9 horas, em média, atrás da África do Sul | Foto: Shutterstock
A decisão assustou até a imprensa tradicional, que tem parte da crônica alinhada ao pensamento do ministro. A conta é simples: ele estava impedindo os jornais, TVs, rádios, sites de publicarem notícias. Em outro despacho, para tentar explicar o primeiro, Moraes disse que não há proibição para Bolsonaro dar entrevistas, mas o ex-presidente “não poderá usar subterfúgios para a manutenção da prática de atividades criminosas, com a instrumentalização de entrevistas ou discursos públicos como ‘material pré-fabricado’ para posterior postagem em redes sociais de terceiros previamente coordenados”. Como a dúvida permaneceu, Bolsonaro optou por não falar.
Na mesma semana, o ministro determinou, sem aviso prévio, que os militares ouvidos nos interrogatórios do 8 de janeiro não podem usar farda. “A acusação é voltada contra os militares, não contra o Exército como um todo”, informou o gabinete de Moraes.
Outra sessão causou enorme repercussão. Depois de meses usando uma tornozeleira eletrônica, preso por dias numa solitária, chegou a vez de o ex-assessor da Presidência Filipe Martins ser ouvido.
Durante as oitivas, contudo, Moraes caçou a palavra, mais de uma vez, do advogado Jeffrey Chiquini. “Enquanto eu falo, o senhor fica quieto”, disse Moraes.
Chiquini não foi o único advogado alvo da fúria do ministro. Nos primeiros depoimentos sobre a farsa do “golpe de Estado”, o advogado Eumar Novacki, que defende o ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal Anderson Torres, foi repreendido. “Não vou permitir que vossa senhoria faça circo no meu tribunal”, disse Moraes.
O que o ministro quis dizer com “meu tribunal”? Numa comparação simples, a ação penal sobre o 8 de janeiro corre 14 vezes mais rapidamente do que a Ação Penal 470, do intrincado escândalo do Mensalão, julgado em 2012. Uma das estratégias para a celeridade poderia configurar violação de direitos humanos: Moraes mantém preso, de forma cautelar, o general Walter Braga Netto desde o dia 14 de dezembro.
A defesa pediu a soltura cinco vezes, todas negadas. Justamente por haver uma pessoa presa no âmbito da ação penal, foi possível realizar todas as audiências no recesso do Judiciário, em julho, e correr com o processo para acelerar as condenações esperadas — o desfecho deve ser em setembro.
Mais: ele continua abrindo novas investigações. A vítima mais recente é o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP). O ministro mandou bloquear as contas bancárias do parlamentar, que não pode sequer fazer um Pix. A decisão foi estendida à mulher do congressista, Heloísa. Moraes incluiu no procedimento Filipe Barros (PL-PR), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Barros foi alvo de notícia-crime apresentada pelo advogado Benedito Silva Junior, o qual aponta que o parlamentar teria, em maio de 2025, participado de reuniões com Eduardo, o congressista norte-americano Cory Mills e representantes da empresa SpaceX.
Tudo faria parte de uma trama mirabolante contra a soberania do Brasil.
O que dizem os outros dez ministros do STF? Nos últimos cinco anos, houve um enorme espírito corporativista. Como afirmou Barroso no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 13 de julho de 2023: “Nós vencemos o ‘bolsonarismo’”. O pronome no plural explica muita coisa. Quando assumiu a presidência da Corte, por exemplo, Barroso e Gilmar Mendes trocaram afagos, deixando no passado brigas acaloradas. Em 2018, Barroso disse que o colega “era uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”. É cedo para afirmar que o vento virou no STF, mas os jornalistas que acompanham a Corte afirmam que algo mudou desde a semana passada, quando perderam os vistos para os Estados Unidos. Com exceção de Flávio Dino, eles têm evitado os microfones, algo raro. Não foram a palestras nem eventos e os semblantes desbotaram. A nota do STF em defesa de Moraes é a mais tímida dos últimos anos.
Tortura Desde a confusão no dia 8 de janeiro, em Brasília, Oeste decidiu acompanhar de perto e sem descanso o que aconteceria com os presos em Brasília. Até hoje, a imprensa tradicional esconde a morte de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão, no Presídio da Papuda. Moraes não teve tempo de atender aos pedidos da defesa, com aval da Procuradoria-Geral da República, para que saísse da cadeia e buscasse atendimento médico.
Na semana passada, o ministro revogou a prisão domiciliar e mandou de volta à cadeia a professora aposentada Iraci Nagoshi, de 72 anos, e a dona de casa Vildete Guardia, de 74 anos. O motivo? Supostos descumprimentos do uso da tornozeleira eletrônica. O advogado que defende as duas idosas disse que todas as violações foram explicadas ao STF.
Por exemplo: os equipamentos estão com problemas técnicos. As duas mulheres têm problemas de saúde: Iraci é diabética e hipertensa, e teve uma fratura óssea por causa de uma queda. Vildete tem trombose, uma enfermidade que a levou a uma cadeira de rodas durante o período em que esteve no cárcere, antes de obter a prisão domiciliar via STF. Tudo isso ajuda a jogar luz nas razões das sanções impostas a Moraes — que podem não parar por aí. De acordo com a Lei Magnitsky, ele não poderá realizar transações financeiras com empresas — bancos, fintechs, plataformas digitais — sediadas nos EUA.
Terá sérias dificuldades para utilizar cartões de crédito, abrir contas bancárias, usar aplicativos de celular, internet e compras on-line. Aqui entra um ponto crucial e definitivo: alguém sancionado com tanto rigor internacionalmente pelos Estados Unidos da América segue apto para conduzir inquéritos e processos que envolvem empresas — com acionistas do mundo inteiro — e julgar o destino de vidas no Brasil?
Revista Oeste