sexta-feira, 18 de julho de 2025

Ana Paula Henkel e 'O Brasil na encruzilhada'

 Para conter o avanço do totalitarismo, Trump mostra sua força e desenha uma linha na areia. Diante das provocações de Lula, o país bateu de frente com tarifas, retaliações, possíveis sanções e agora o envolvimento da Otan


Ilustração: Shutterstock 


E m 9 de julho, logo após o encontro do Brics no Rio de Janeiro e mais uma série de provocações de Lula aos Estados Unidos, o presidente americano Donald Trump deu um nó diplomático no Brasil ao anunciar uma tarifa de 50% sobre as importações brasileiras, a partir de 1º de agosto, citando os “ataques insidiosos” à liberdade pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e sua perseguição implacável ao ex-presidente Jair Bolsonaro. 

No entanto, engana-se quem avalia que a linha desenhada na areia por Trump seja apenas uma mera disputa comercial. As equações de Trump são um alerta calculado de que a atual Casa Branca vê o Brasil de Lula como um aliado desgarrado, deslizando para o totalitarismo, que pode se sentir fortalecido por sua aliança com a Rússia, a China e o Irã — hoje, regimes de exceção. 

Nesta semana, a insatisfação com o Brasil subiu mais um degrau. Poucos dias depois do tarifaço de Trump, o presidente americano publicou uma carta com o timbre da Casa Branca endereçada a Bolsonaro e classificando o governo de Luiz Inácio Lula da Silva como um “regime” — termo reservado para Estados autoritários. 


Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao lado de chefes de Estado e de governo dos países membros, parceiros e de engajamento externo, no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro, RJ (7/7/2025) | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Na diplomacia internacional, a palavra “regime” é uma arma retórica, usada para deslegitimar governos considerados antidemocráticos ou hostis. Reagan a usou contra a União Soviética; Bush, contra o Iraque de Saddam Hussein; e agora Trump a direcionou ao Brasil de Lula. Em sua carta a Bolsonaro, Trump escreveu: “O regime em Brasília, liderado por Lula e seus executores judiciais, está travando uma guerra contra a liberdade, mirando você e seus apoiadores com uma caça às bruxas que espelha minhas próprias batalhas”. 

A escolha da palavra “regime” sinaliza que Trump considera o governo de Lula desprovido de legitimidade democrática, impulsionado pelas ordens de censura “secretas e ilegais” do STF, liderado pelo ministro Alexandre de Moraes, e pela perseguição a Bolsonaro em razão da suposta conspiração golpista após as eleições de 2022. 

O termo “regime” carrega um peso histórico, reservado para Estados como o Irã pós-1979 ou a Venezuela de Maduro, onde normas judiciais e eleitorais foram erodidas. Ao aplicá-lo ao Brasil, Trump equipara o governo de Lula a esses párias, acusando-o de trair os valores democráticos que Brasil e EUA outrora compartilharam. Essa escalada retórica sublinha a estratégia mais ampla de Trump: pressionar o Brasil a abandonar sua atual relação com o autoritarismo impulsionado pelo Brics ou enfrentar o isolamento econômico e diplomático. 


Donald Trump, presidente dos EUA, na Casa Branca, em Washington, D.C. (15/7/2025) | Foto: Reuters/Jonathan Ernst/Foto de arquivo

A insatisfação de Trump com Lula e a preocupação com o Brasil não são de agora. O alinhamento de Luiz Inácio com regimes autoritários foi exposto em 2023, quando ele recebeu o ditador da Venezuela, em Brasília, com todas as honras de Estado. Isso, apesar de Maduro estar na lista de procurados dos EUA por narcoterrorismo, com uma recompensa de US$ 25 milhões. 

A recepção calorosa foi um ato provocador, alinhando o Brasil com um regime de exceção que reprime seu povo e desafia abertamente os interesses dos EUA. Em janeiro deste ano, Maduro fez coro com as provocações de Lula e intensificou as tensões ao pedir que o Brasil “libertasse” Porto Rico dos americanos, levando o senador americano Rick Scott a enviar a Lula uma carta exigindo explicações.

 Mas a acolhida a Maduro não foi um evento isolado. Em 2024, Lula voltou a se encontrar com o ditador, reforçando laços com a Venezuela, apesar de seu histórico de repressão e colapso econômico. 

Essa postura contrasta diretamente com a visão de Trump, que considera Maduro uma ameaça regional, parte de um “novo Eixo do Mal” ao lado de Irã, Rússia e Cuba. A decisão de Lula de tratar um criminoso procurado como um aliado legítimo intensifica as acusações de Trump de que o Brasil está se afastando dos valores democráticos ocidentais, alimentando o uso do termo “regime” em sua carta a Bolsonaro. 


Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, e Lula, durante reunião bilateral em Kingstown, São Vicente e Granadinas (1º/3/2024) | Foto: Ricardo Stuckert/PR

O colapso da Venezuela serve como uma advertência para o Brasil, embora o país ainda não tenha atingido esse extremo. A Suprema Corte do país, repleta de aliados, começou a usurpar funções legislativas, como em 2017, quando tentou dissolver a Assembleia Nacional liderada pela oposição, desencadeando uma condenação internacional. A repressão à mídia, à liberdade de expressão, a nacionalização de indústrias e os controles cambiais levaram a uma hiperinflação de 1.698.488% em 2018 sob Nicolás Maduro, resultando em migração em massa e repressão. O alinhamento da Venezuela com o Irã, Rússia e Cuba a isolou do mundo democrático, transformando uma nação próspera em um Estado pária. 

O Brasil não é a Venezuela, mas sinais preocupantes emergem. O STF, sob Moraes, espelha o Judiciário venezuelano ao emitir ordens de censura, incluindo a proibição temporária do X e multas a empresas de tecnologia americanas, e perseguir Bolsonaro por suposta conspiração golpista após 2022. Essas ações, embora menos graves que as da Venezuela, corroem as normas democráticas, justificando o rótulo de “regime” por Trump. 

A liderança de Lula no Brics — composto de Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Irã e outros — tem sido um ponto de tensão. Na cúpula do Brics de 6 e 7 de julho de 2025, no Rio, Lula condenou os ataques dos EUA e de Israel às instalações nucleares do Irã e defendeu uma moeda do Brics para desafiar o domínio do dólar, ecoando sua proposta de 2023 para uma moeda sul-americana. 


Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República, durante sessão plenária no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro, RJ (6/7/2025) | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Nesta semana, Trump perdeu a paciência com outro aliado de Lula, Vladimir Putin, dando ao russo 50 dias para cessar a guerra contra a Ucrânia. A dependência do Brasil do diesel russo (64% das importações em 2024) o torna vulnerável às ameaças de sanções de Trump às exportações de energia da Rússia, um movimento que poderia paralisar a economia brasileira. 

Os laços de Lula com regimes autoritários vão além da economia. Sua proximidade com a China, maior parceiro comercial do Brasil, que compra soja e minerais enquanto promove o yuan sob manipulação cambial, e seu apoio ao Irã, um Estado que financia o terrorismo desde a crise dos reféns de 1979, alinham o Brasil com forças antiamericanas. 

A condenação do Brics aos ataques dos EUA contra o Irã na cúpula foi um desafio direto, levando Trump a ver Lula como um peão voluntário em um eixo autoritário global. Tarifas e Seção 301: arma de duplo calibre As tarifas de 50% de Trump, um salto em relação aos 10% impostos em abril, abalaram a economia brasileira. O real se desvalorizou mais de 2% em relação ao dólar, e empresas como Embraer e Petrobras perderam valor de mercado significativo. 

O Brasil, um grande fornecedor de café, suco de laranja e carne bovina para os EUA, enfrenta aumento de preços e perda de competitividade global.


As tarifas foram uma resposta direta ao alinhamento de Lula com o Brics e à censura de Moraes, com Trump acusando o Brasil de atacar eleições livres e a liberdade de expressão. Diante das respostas nada diplomáticas de Lula, o Brasil entrou em outro caminho tênue: a famosa Seção 301, do Trade Act de 1974, permite aos EUA investigar práticas comerciais estrangeiras consideradas injustas ou restritivas ao comércio americano. A investigação no Brasil estará focada em:


• Comércio digital e serviços de pagamento eletrônico: restrições a plataformas americanas como Truth Social e Rumble, ligadas às ordens de censura de Moraes. 

• Tarifas preferenciais injustas: tarifas mais baixas para México e Índia em detrimento de exportações americanas de etanol. 

. Interferência anticorrupção: fraca aplicação de medidas anticorrupção, prejudicando empresas dos EUA. • Proteção à propriedade intelectual: salvaguardas inadequadas que afetam inovadores americanos. 

• Acesso ao mercado de etanol: barreiras às exportações de etanol dos EUA. 

• Desmatamento ilegal: práticas ambientais que impactam a equidade comercial. 


Ronald Reagan e Margaret Thatcher, durante viagem a Camp David, em discurso de rádio no Laurel Lodge, nos EUA (15/11/1986) | Foto: Domínio Público


Essa investigação é um prenúncio de novas sanções comerciais, como tarifas adicionais ou restrições, caso o Brasil não negocie. Um precedente alarmante é a investigação da Seção 301 contra a China em 2018, que resultou em tarifas de 25% sobre US$ 50 bilhões em produtos chineses, posteriormente expandidas para US$ 360 bilhões, por práticas como transferência forçada de tecnologia e roubo de propriedade intelectual. 

Para o Brasil, a investigação ameaça setores vitais, como o agronegócio e a indústria, aumentando o risco de uma guerra comercial que pode isolar o país economicamente, como alertou o ex-oficial de comércio americano Brad Setser. 


A estratégia global de Trump 

As tarifas, a investigação da Seção 301 e as ameaças de sanções de Trump fazem parte de uma estratégia mais ampla para reafirmar a liderança americana, ecoando a luta de Reagan contra o comunismo em um tabuleiro mais amplo. E, neste xadrez complexo da geopolítica, o Brasil de Lula enfrentará outra peça magistral: a Otan. 


Quadro eletrônico exibe informações sobre as flutuações recentes dos índices de mercado na Bolsa de Valores B3, em São Paulo (10/7/2025) | Foto: Reuters/Alexandre Meneghini 


Na cúpula da Otan neste mês de julho, Trump reuniu aliados para enfrentar o desafio do Brics, enfatizando sanções à Rússia e a seus parceiros. O secretário-geral da Otan, Mark Rutte, um pragmático de centro conhecido por sua habilidade diplomática, desempenhou um papel crucial. Longe de ser um extremista de direita, Rutte, exprimeiro-ministro holandês por 14 anos, elogiou a “ação decisiva” de Trump contra o programa nuclear do Irã e assegurou um compromisso histórico de 5% do PIB em gastos com defesa até 2035, creditando a pressão de Trump. “Esses países teriam atingido 2% sem a liderança de Trump? Não”, afirmou Rutte, destacando a ameaça da Rússia, da China e do Irã.

As declarações de Rutte sobre o Brasil, a China e a Índia sublinharam a preocupação da Otan com a agenda do Brics. Em uma entrevista nesta semana em Washington, ele alertou: “Nações que se alinham com a agressão da Rússia ou a coerção econômica da China correm o risco de perder a confiança do mundo democrático”, citando as importações de diesel do Brasil e a retórica antiamericana de Lula. 

A carta de Trump a Bolsonaro, chamando o governo de Lula de “regime”, reforçou essa postura, sinalizando que os EUA não tolerarão aliados que se aproximem do autoritarismo. O secretário de Estado Marco Rubio, um falcão contra o Irã e a Venezuela, molda essa política linha-dura, garantindo que a Otan permaneça um baluarte contra o desafio do Brics. 



Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA, durante reunião entre o presidente Donald Trump e o secretário-geral da Otan, Mark Rutte, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, D.C. (14/7/2025) - Foto: Reuters/Nathan Howard/Foto de Arquivo 


As tarifas de Trump, a investigação da Seção 301, as ameaças de sanções e a liderança na Otan são um projeto para uma realinhamento global, enfrentando o desafio do Brics ao dólar e à supremacia ocidental. As advertências de Rutte sobre o alinhamento do Brasil com a Rússia e a China refletem a preocupação da Otan de que as políticas de Lula ameacem a estabilidade global. A estratégia de Trump espelha a pressão econômica de Reagan para enfraquecer adversários, garantindo que os EUA permaneçam como “xerife do mundo”. 

A dependência do Brasil do diesel russo e do comércio chinês dá a Lula alavancagem, mas também vulnerabilidade. Novas sanções americanas às exportações de energia da Rússia e os resultados da investigação da Seção 301 poderiam desencadear uma crise no Brasil, semelhante ao colapso dependente de petróleo da Venezuela. 

A insistência de Lula em uma visão multipolar, liderada pelo Brics, é um desafio direto a essa ordem que protege os pilares da civilização ocidental. A retórica antiamericana pode até render pontos políticos a Lula no curto prazo, mas não será tolerada. 

Ela é um risco à paz do Ocidente no longo prazo. A carta de Trump a Bolsonaro, a investigação da Seção 301 e agora o envolvimento da Otan são um alerta: o Brasil deve reafirmar os valores democráticos ou enfrentar consequências econômicas e diplomáticas. A escolha é clara — liberdade ou autoritarismo. 

O xerife traçou sua linha, e o mundo está observando.

Liberdade vs. autoritarismo


Ana Paula Henkel - Revista Oeste