Dou-me por satisfeito em relatar pouco do muito que vivenciei no Gilmarpalooza... 'pouco' que, no entanto, é muito perto do nada oferecido pela velha imprensa
A os vinte e poucos anos de idade, entre 1867 e 1872 (quando os impostos sobre exportações e, principalmente, importações representavam quase 40% da arrecadação fiscal portuguesa; época de ouro da criatividade lusitana em criar tributos, especialmente sobre o consumo), Eça de Queiroz combateu certa tirania da tributação nas páginas do seu jornal Distrito de Évora. Já na edição 36, de 12 de maio de 1867, Eça ensina os seus leitores a reconhecer o autoritarismo fiscal por meio da legitimidade na exigência:
“Diz-se geralmente que o imposto é o melhor meio que o contribuinte tem de colocar a sua fazenda. […]. O contribuinte paga ao Estado os serviços que dele recebe […]. O governo ilumina-lhe as ruas, abre-lhe as estradas, protege-lhe a sua propriedade, garante-lhe a segurança do seu comércio, conduz-lhe higienicamente as águas que ele há-de beber, fiscaliza-lhe os géneros de que se há-de alimentar, calça-lhe as ruas, organiza as forças que o hão-de defender, etc. O indivíduo, assim encontrados, facilitados os obstáculos materiais, prossegue mais seguramente na via dos desenvolvimentos e das abundâncias. […]. Mas quando o governo não desse a polícia, nada havia que justificasse o tributo. […].O Estado não tem […] o direito a receber o preço de serviços que não presta. Ele não protege, não defende, não policia; não cura da higiene, não faz nada, e hão-de os contribuintes fazer o sacrifício da sua abundância, do seu trabalho, do seu pão? Hão-de fazer o sacrifício do seu sustento para terem o prazer de ser desprezados? Desprezados: há, da parte das autoridades daqui, desprezo pelo povo. Deixam o povo abandonado, sem defesa, sem protecção, sem garantias de saúde, de moralidade, de felicidade. […]. Ou o governo nomeie outras autoridades, ou faça cumprir a estas o seu dever. A questão não é de nomes, é de factos. A relação social é uma permutação de dever: o povo cumpre o seu dever de contribuição; o governo, sob pena de desonestidade, deve cumprir o seu dever.”
Eça de Queiroz, então, vivia em Évora, perto de Lisboa, mas longe (em parâmetros lusitanos) de onde nascera, em 1845, Póvoa do Varzim. Cento e oitenta anos e muitas estradas depois, leva-se, hoje, pouco mais de três horas para percorrer os 342 quilômetros que separam a cidade natal do escritor da capital e maior cidade portuguesa, onde estive, na semana anterior, para acompanhar o XIII Fórum de Lisboa, evento anual sediado entre os prédios da Reitoria e da Faculdade de Direito da prestigiada Universidade de Lisboa. O evento — mais conhecido (ou somente reconhecido) como Gilmarpalooza — aconteceu ao longo dos insuportavelmente quentes dias 2, 3 e 4 deste mês de julho.
Este cronista, ao longo de uma semana, rascunhou e apagou diversos textos sobre esses dias: ora por desgostar da redação, ora por medo, perdi a noção do tempo. Tornou-se o Gilmarpalooza passado; o assunto do momento é a investida de Donald Trump contra o Estado de Exceção travestido de democracia coleguinha de Estados totalitários ou terroristas, isto é, o Brasil do governo Lula (governo de direito, vale dizer, vez que o governo de fato foi solapado pelo Supremo Tribunal Federal).
Entretanto, tais novíssimos acontecimentos são tão complementares a ponto de tornarem a prometida crônica dos meus dias em Lisboa muito mais interessante, porque, conforme revelado por Oeste no último dia 8, apesar de apenas 11 parlamentares federais, entre deputados e senadores, terem palestrado no evento, 36 viajaram para Lisboa custeados com o dinheiro do brasileiro pagador de impostos: foram-se mais de R$ 760 mil entre utilização de aviões da FAB, passagens de avião em classe executiva, hospedagem em hotéis cinco estrelas e alimentação.
Isso sem contar os eventuais prováveis pedidos de reembolso de
outros 14 deputados que pagaram as suas viagens e despesas
diretamente; sem contar também a utilização dos cofres dos partidos
políticos; sem contar, ainda, os custos aos cofres do STF, STJ, PGR, CNJ
e tantas outras siglas do sistema jurisdicional, bem como, é claro, do
governo federal, já que, por lá, passaram AGU, Ministério da Justiça e
Segurança Pública, Ministério da Educação e Secom — todos cofres
abastecidos, obviamente, com dinheiro do mesmo pagador de
impostos gourmetizado sob o título de contribuinte.
Acontece que, poucos dias depois de o PT ter lançado uma campanha (com dinheiro do pagador de impostos) na qual um burro representava todos os críticos do seu método sistemático de aumento de imposto para inculcar, em suma, que imposto é bom, o imposto tornou-se uma tragédia para o mesmo PT e seus asseclas diante do anúncio do robusto aumento de impostos sobres os bens que o Brasil exporta aos Estados Unidos.
Sem entrar no mérito das razões que levaram a tal sanção tributária, o ardil diabólico do governo brasileiro desnuda-se: dinheiro pouco, meu tributo primeiro. Ou: imposto bom é o que enche minhas burras; ponto.
Imposto por imposto, qual é a diferença entre a investida tributária de Trump e as muitas investidas fiscais de Lula? Os impostos pagos aos Estados Unidos beneficiam os cidadãos americanos. Já os tributos brasileiros… quem se beneficia deles?
Voltamos ao texto de Eça de Queiroz para dizer que a imposição tributária de Trump ao exportador brasileiro é tão negativa ao brasileiro quanto todas as muitas inovações fiscais de Lula, uma vez que o Brasil não tem o legítimo “direito a receber o preço de serviços que não presta. Ele não protege, não defende, não policia; não cura da higiene, não faz nada, e hão-de os contribuintes fazer o sacrifício da sua abundância, do seu trabalho, do seu pão? Hão-de fazer o sacrifício do seu sustento para terem o prazer de ser desprezados? Desprezados: há, da parte das autoridades daqui, desprezo pelo povo. Deixam o povo abandonado, sem defesa, sem protecção, sem garantias de saúde, de moralidade, de felicidade”.
Longe de celebrar qualquer aumento de impostos, em teoria, pode-se até afirmar, ainda na esteira de Eça, que a sanção tributária de Trump (porque condicionada à insistência, “da parte das autoridades daqui”, no desprezo ao povo e ao império da Lei) seja mais benéfica que os abusos tributários de Lula. É como se Trump dissesse às autoridades brasileiras: “Ou o governo nomeie outras autoridades, ou faça cumprir a estas o seu dever. A questão não é de nomes, é de factos”.
A sobretaxa dos EUA pode cessar quando o Brasil voltar a respeitar a sua própria Constituição e deixar de se alinhar, voluntária e ostensivamente, com os inimigos históricos do Ocidente (Rússia, China, Irã etc.). A perseguição política contra Bolsonaro e seus apoiadores foi apenas o estopim de uma bomba armada pelos atuais governistas conduzidos aos poder e tutelados pelo STF, que é, portanto, o verdadeiro grande responsável por essa tragédia anunciada.
Depois de muita expectativa pela aplicação da Lei Magnitsky contra o testa de ferro do Estado Novo brasileiro, não é mera coincidência que o governo Trump tenha adotado uma medida mais ampla e gravosa em menos de uma semana do término do famigerado Gilmarpalooza, no qual sinergia e cumplicidade irrestrita foram escancaradamente assumidas entre governo Lula e figuras de proa do STF, em cujos pés rastejavam, em Lisboa, os protagonistas do Poder Legislativo; onde os mais supremos dentre os supremos juízes estiveram de mãos dadas com o ministro Alexandre de Moraes — à exceção do ministro André Mendonça — para se regozijarem e se gabarem do estado de exceção instalado por eles próprios para a defesa de uma indecifrável democracia à brasileira.
E os grandes empresários prósperos em suas exportações aos Estados Unidos e que empregam tantos brasileiros? Também eles estavam em Lisboa: presencialmente ou representados por prepostos ou lobistas, como participantes, expectadores ou promotores e financiadores de eventos nababescos organizados para honra e glória das autoridades ali presentes. Surpreendentemente, também esteve no Fórum de Lisboa Mike Pompeo: ex-diretor da CIA (2017-2018) nomeado Secretário de Estado dos EUA (2018-2021) por Trump e conhecido como um dos “falcões” contra a Venezuela e o Irã (no início de 2020, articulou a morte do principal comandante militar iraniano, Qasem Soleimani).
Às 14 horas (10 da manhã no Brasil) da quinta-feira 3, Pompeo palestrou no salão principal. Apenas três pessoas dividiram o palco: Pompeo (palestrante), André Esteves (comentador, financiador do Fórum e anfitrião da festa mais disputada da “temporada”) e Francisco Mendes (moderador e filho Gilmar que esteve nas manchetes em razão do caso CBF).
Ao que me consta, Pompeo, que estava no mais privilegiado lugar e cercado das mais importantes figuras do evento, nem é ingênuo nem inimigo de Trump. Sua palestra não revelou nada grave, mas, imagino, revelou ao palestrante a gravidade do evento: um luxuoso festival de mentiras sobre o Estado de Direito no Brasil — permeado de outros painéis sobre temas adjacentes e pouco ou nada frutíferos — realizado na Europa (inacessível a milhões de brasileiros pobres, bem como a milhares de cidadãos e lideranças da direita presos ou com passaportes apreendidos à revelia do devido processo legal) para um público majoritariamente (quase que completamente) brasileiro, repleto de lobistas e empresários com acesso privilegiado aos juízes mais importantes do Brasil. Coisa que um republicano como Pompeo jamais aceitaria em seu país.
Dentre os verdadeiros comícios políticos (rotulados como exposição jurídica) sobre a salvação da democracia no mundo a partir da experiência jurisdicional brasileira, isto é, das tais mentiras sobre o Estado de Direito no Brasil, três foram as honrosas exceções: o professor de Direito Constitucional e ministro do STF André Mendonça, o professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP Roger Stifelman Leal e o professor emérito e último dos catedráticos da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho.
Uma vez que fui a Lisboa para acompanhar Manoel Gonçalves (meu professor na graduação, bem como dos ministros Moraes e Toffoli) e em razão do meu veemente fascínio pelo seu magistério e sua obra, meus elogios seriam suspeitos. Recorro, portanto, à descrição feita por Andreza Matais, do portal Metrópoles, uma das poucas jornalistas a experienciar os três dias do festival:
“No segundo dia, sob um calor intenso, um auditório lotado, silencioso, com atenção plena no expositor. Aqueles momentos raros em que, até onde a vista alcança, você não vê ninguém se distrair com o celular. Quem falava era o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, uma ‘lenda viva do direito constitucional’. Em quase uma hora, o professor fez críticas ao ativismo judicial. Num evento com seis ministros do Supremo, alguns na plateia, disse que eles tomam decisões que ‘flagrantemente são uma invasão da separação de poderes’.
‘O que na Constituição não é constitucional? Obviamente, eu aparentemente estou dizendo uma tolice, mas estou me referindo a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental […] virou um instrumento pelo qual ocorre aquilo que o ministro Gilmar Mendes não gostaria de ouvir da minha parte: o ativismo judicial’, afirmou. Em tempos em que a polarização não permite mais o diálogo, o professor deu aula ao divergir. […]
‘Meus senhores e minhas senhoras, eu peço desculpas por ter excedido o tempo. Mas, de certa forma, para mim, essa reunião é um adeus da velha guarda. A jovem guarda dos constitucionalistas está aí. A velha guarda se retira e, tornando concreto o que eu digo: muito obrigado e adeus.’” Aos 91 anos de idade, o “adeus” do notável mestre deixou-me bastante triste. Contudo, embora ministros constrangidos já tivessem escapado à francesa durante a aula, nenhum outro palestrante foi aplaudido por todos, em pé, por quase dois minutos. No terceiro dia, no último painel antes do encerramento formal do fórum, foi a vez de Alexandre de Moraes prelecionar: “Qual rede social nós queremos para os nossos filhos?
Quais redes sociais nós queremos para nossa democracia? Quais redes queremos para o nosso país? […] Se quisermos a anarquia, uma terra sem lei, um ente supranacional, podemos entregar às big techs”, afirmou, logo no início e sem demonstrar, logicamente, o seu dogma.
Em seu Power Point, no melhor estilo dos professores mais medíocres, mostrou postagens “anti-LGBT”, neonazistas e racistas para atribuir responsabilidade jurídica às big techs (“paraíso de agressões, de crimes, de induzimentos”, nas suas palavras), pré-julgadas ali, também, por “dolo eventual”, culpada pelo “golpe” do 8 de janeiro.
Defendeu, sem fundamentar, a regulação das redes, sustentando que são incapazes de se autorregular, razão pela qual “pessoas de bom senso e de boa-fé não podem querer a autorregulação das redes”, haja vista que “nada na história da humanidade, nada na história do mundo, nenhuma atividade econômica deixou de ser regulamentada”… seria cômico não fosse trágico, pois falava em pleno paraíso do lobby.
Para Moraes, a regulação das redes é viável por tratar de “crimes preexistentes” (mais uma das suas invencionices lustrosas) e necessária porque o povo brasileiro é mentalmente incapaz: “As redes sociais fazem uma lavagem cerebral no povo sobre liberdade de expressão”.
O fato é o que Fórum Jurídico de Lisboa, com o passar dos anos, foi se transformando de evento acadêmico em privilegiado festival do lobby no qual, mais importantes que os painéis e as exposições cada vez menos acadêmicas, são as recepções particulares de grandes grupos de interesse onde os advogados presentes circulam para promover os seus serviços e lobistas sacramentam as suas promessas remuneradas a peso de ouro. Não se veem, nelas, os renomados juristas; apenas importantes autoridades e “facilitadores” experientes. Muitos são os convidados, mas poucos têm acesso às áreas mais restritas.
Nos hotéis e restaurantes mais badalados, figurões às expensas do Congresso fazem outro tipo de festa. Política, permissividade e promessas andam juntas. Não é lugar para um jornalista… especialmente, para alguém como eu. Tornei-me, em Lisboa, o famoso espalha rodinha: se, nas dependências da Universidade de Lisboa, fui fulminado pelos olhares sombrios de Alexandre, nos regabofes adjacentes senti-me um estraga-prazeres.
Por fim, já que a polêmica do desprezo aos passageiros pagantes da classe executiva da TAP (eu inclusive) em detrimento do ministro da Justiça, sua mulher e assessores é assunto velho — lembrando que ninguém se pronunciou, ainda, sobre as compras feitas pela mulher de Lewandowski, que requereu o tax refund, mas não declarou as suas compras na alfândega brasileira nem passou pela humilhação que nós, mero provo, passamos toda vez que retornamos do exterior —, dou-me por satisfeito em relatar pouco do muito que vivenciei no Gilmarpalooza… “pouco” que, no entanto, é muito perto do nada oferecido pela velha imprensa.
Estivesse vivo e fosse a Lisboa, Raymundo Faoro reescreveria a sua
obra-prima.
Revista Oeste