A um ano das eleições, o Congresso dá as costas para o cambaleante governo Lula, que pede socorro ao Supremo Tribunal Federal para terminar o mandato
E stá em curso no Brasil uma tentativa deliberada e sem disfarce de anular o Poder Legislativo. Ao contrário do que ocorreu em outros momentos da história do país, desta vez não há movimentação de tropas nem generais no comando: quem pretende dissolver o Congresso Nacional é o consórcio que venceu as eleições de 2022, formado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo PT.
O tema não é novo. Desde que voltou ao poder, o presidente Lula da Silva não conseguiu montar uma base mínima de deputados para votar seus projetos — o problema sempre foi aritmético. Mas, desde a semana passada, a baderna institucional e o desarranjo político estão escancarados. Depois de ter sido humilhado na tentativa de aumentar impostos à revelia do Legislativo, o petista disse com todas as letras que administra o país em sociedade com ministros do Supremo, o que não está escrito em nenhuma linha da Constituição — pelo contrário, o artigo 2º da Carta prega a independência dos três Poderes.
“Se eu não for à Suprema Corte, não governo mais o país”, afirmou, sem rodeios, na quarta-feira, 2, em entrevista a uma TV na Bahia. Em seguida, Lula continuou seu raciocínio tíbio: “Cada macaco no seu galho. O Congresso legisla, eu governo”. O repórter poderia ter feito a seguinte pergunta: “Mas o que o Congresso fez ao vetar o aumento de impostos não é justamente legislar?”.
Aos fatos: a crise política, que para a maioria dos congressistas não tem volta, instalou-se na noite do dia 25. A Câmara impediu a ampliação da cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), que renderia fôlego de R$ 10 bilhões ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O placar foi avassalador: 383 votos a 94. Traduzindo: o governo nem sequer conseguiu colocar cem votos no plenário, e não teve o apoio das bancadas de esquerda do PSB e do PDT — este último, abalado desde que Carlos Lupi foi rifado no escândalo do INSS. O Senado chancelou a decisão da Câmara em votação simbólica horas depois.
A partir daí, o que aconteceu em Brasília foi um festival de inabilidade política e autoritarismo do PT.
Em vez de aceitar a decisão soberana do Congresso e buscar uma alternativa para o terremoto fiscal, Lula, Haddad e a articuladora política do governo, Gleisi Hoffmann, decidiram partir para a briga. Gleisi ameaçou, em postagem nas redes sociais, represar as emendas dos deputados; Haddad disse que o presidente da Câmara, Hugo Motta, descumpriu um acordo firmado a portas fechadas; e Lula convocou a militância de esquerda para ressuscitar um velho discurso.
Em sua terceira passagem pela Presidência da República, a quinta do PT, Lula resgatou um bordão dos anos 1990, quando convocava greves no ABC Paulista: “Nós contra eles”. Sempre foi da natureza petista radicalizar e sacar esse discurso ideológico em tempos difíceis. Ocorre que o “eles”, desta vez, são milhões de pagadores de impostos, sobrecarregados de tributos e insatisfeitos com a geladeira mais vazia.
O petista tampouco fez a seguinte conta: em Brasília, o “nós” reuniu 94 votos no Plenário; já o “eles” juntou 383, um quórum capaz de aprovar qualquer emenda constitucional e impeachment de presidente. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, Lula vai dobrar a provocação: ele não deve sancionar ou até vetar o aumento de cadeiras na Câmara — de 513 para 531. O prazo é dia 16. Se ele não se manifestar, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, pode promulgar o texto aprovado nas duas Casas. Porém, se houver veto de Lula, o nível da fervura política é imprevisível.
Paralelamente, mesmo depois de desaconselhado por juristas, por se tratar de uma prerrogativa legítima do Legislativo, o ministro da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, recorreu à Corte — e disse que conversa abertamente com os togados. O conjunto da obra, que já era ruim em Brasília, ficou ainda pior porque o decano, Gilmar Mendes, teve uma ideia: deixar o caso nas mãos de Alexandre de Moraes, que bate recorde de impopularidade entre os parlamentares. Em seguida, Gilmar levou todos eles para Lisboa, congressistas e ministros, junto com empresários, para o seu convescote anual — evento criticado até pela ala da imprensa que bajula o STF.
Outro dado importante: além de se mostrar mais agressivo hoje em dia, Lula ignorou caminhos que ele próprio percorreu em crises graves no passado. Em 2005, quando o PT fez uma lambança e perdeu o comando da Câmara dos Deputados numa madrugada histórica, Lula pediu ajuda a aliados moderados. Naquela época, o PT lançou dois candidatos — o paulista Luiz Eduardo Greenhalgh e o mineiro Virgílio Guimarães — e tomou um baile da oposição, que conduziu o folclórico Severino Cavalcanti à presidência.
Brasília vivia meses tumultuados por causa do estouro do Mensalão. Qual foi a saída? Depois de 217 dias de intensa articulação política, Severino caiu. Aldo Rebelo foi chamado para apagar o incêndio e presidiu a Câmara. Andre Marsiglia @marsiglia_andre · Seguir Código de Processo Civil Art. 145. Há suspeição do juiz: II -(…)que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa (…) Parece que temos uma confissão. Messias precisa dizer imediatamente com que ministros conversou. Estes ministros não podem julgar o caso
No segundo mandato, em 2007, Lula enfrentou novamente a fúria do PT e escalou um dos mais hábeis negociadores da Casa, José Múcio Monteiro, do PTB, para a coordenação política. A diferença no perfil de Múcio (hoje ministro da Defesa) e integrantes dessa nova esquerda encrenqueira ficou evidente, por exemplo, na noite do fatídico 8 de janeiro de 2023. Imagens mostram uma discussão ríspida entre ele e Flávio Dino, que chefiava a pasta da Justiça. Sempre que foi questionado sobre o “golpe do 8 de janeiro”, Múcio disse que assistiu a um tumulto, com cenas de vandalismo iguais às tantas que acompanhou em cinco mandatos como deputado federal.
Fato é que Lula dá sinais de que não tem mais paciência nem tino para a política. As tradicionais reuniões no Palácio da Alvorada e os churrascos na Granja do Torto deram lugar a uma agenda descontrolada de viagens ao exterior. Além disso, a presença da primeira-dama, Janja da Silva, a tiracolo inibe conversas com parlamentares — ela não só decide quem pode ou não ser recebido no gabinete, como atende os telefonemas.
Por fim, outro ponto crucial para entender a crise é o instinto de sobrevivência política. Nesta época do ano, os deputados viajam para os seus redutos eleitorais. Seja nas festas do São João, seja em eventos de férias, o descontentamento com a gestão petista é visível. Eles ouvem críticas de que os alimentos estão caros, a gastança de Janja com viagens pegou muito mal, houve queda no poder de compra, e nenhuma das promessas de campanha foi cumprida — a picanha não apareceu, e não há um único tijolo de obra. Todos os institutos de pesquisa mostram a avaliação do governo em queda livre. O ministro da Secretaria de Comunicação Social, Sidônio Palmeira, parece completamente perdido. Não há nomes para substituir Fernando Haddad na Fazenda.
A sobrevivência da democracia - Revista Oeste
Matéria publicada no jornal The Economist (29/6/2025) | Foto: The Economist/Reprodução
O resultado dessa equação é o desembarque do chamado centrão, que dá musculatura para a governabilidade no Congresso, mas não vai correr riscos em 2026. O PT ficou isolado. Os dirigentes do PP e do União Brasil falam abertamente em entregar os ministérios no segundo semestre. O PSD, de Gilberto Kassab, e o Republicanos, de Hugo Motta, estão apenas aguardando a definição sobre o futuro de Tarcísio de Freitas nas urnas — ele é filiado ao Republicanos e tem o PSD como vice.
Essas quatro siglas reúnem uma massa de prefeitos e vereadores enorme. Por exemplo, a fusão de PP e União resultará em 1,4 mil prefeitos, 12 mil vereadores, 6 governadores, 109 deputados e 14 senadores. Sozinho, o PSD administra 891 cidades, onde moram 8/15 milhões de pessoas.
O Republicanos tem a força da Igreja Universal do Reino de Deus. Isso sem contar o PL, de Jair Bolsonaro. Ou seja: quem vai fazer campanha para Lula em 2026? Qual deputado ou senador (serão renovadas 54 cadeiras) vai subir no palanque Lula? Aliás, onde ele terá palanque, já que o PT fez só 252 prefeituras e uma única capital (Fortaleza)?
O Psol não tem prefeitos. Interferência do STF Na quarta-feira, a deputada Caroline de Toni (PL-SC) jogou luz no tamanho da interferência do Judiciário no Legislativo. Ela disse em entrevista ao programa Pânico, da Jovem Pan, que os ministros do STF estariam monitorando os votos dos deputados. Trocando em miúdos: uma equipe do STF estaria “fichando” os parlamentares para saber quem atua contra ou a favor das vontades da Corte.
A deputada descreve um episódio até similar à atual crise do IOF. A Câmara aprovou um projeto para desonerar a folha de pagamento, em benefício de 17 setores produtivos. Lula não gostou e vetou. O Congresso reagiu e derrubou o veto presidencial, numa queda de braço natural — e constitucional. Sempre foi assim, desde a redemocratização do país. Imediatamente, a AGU acionou o Supremo.
O caso caiu nas mãos do ministro Cristiano Zanin, que mandou a Câmara legislar de acordo com o que o STF e o governo querem. Uma pergunta parece inevitável: se a interferência do STF chega ao ponto de impedir o Congresso de legislar e a imunidade parlamentar prevista no artigo 53 da Constituição já foi rasgada para perseguir deputados de direita, qual é o papel do Poder Legislativo no Brasil?
O Parlamento brasileiro já foi dissolvido 18 vezes na história, algumas delas simbólicas: em 1891, pelo marechal Deodoro da Fonseca; na década de 1930, por Getúlio Vargas; e pelos atos institucionais, no regime militar. Nunca o resultado foi bom. Com todas as suas imperfeições, o Congresso é a caixa de ressonância da sociedade, e o único capaz de conter, pelas vias democráticas, a mentalidade autoritária de quem não aceita sair do poder. O que está em jogo hoje no país é a sobrevivência da política — ou a ditadura.
Sílvio Navarro - Revista Oeste