terça-feira, 18 de março de 2025

Seis anos do inquérito que está erodindo a democracia no Brasil

 

Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, durante sessão do STF em 2023. (Foto: Nelson Jr./STF)


No fim de agosto do ano passado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, disse em entrevista que “não está distante a conclusão do inquérito, seja pelo arquivamento, seja pela denúncia”, em referência ao inquérito das fake news, aberto em 2019 por Dias Toffoli, então presidente do STF, com relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Mais de seis meses já se passaram desde essa declaração de Barroso, no entanto, e o inquérito continua em andamento, tendo completado seis anos na semana passada sem perspectiva de encerramento.

Em outra ocasião, já no fim de 2024, o mesmo Barroso afirmou a jornalistas que o inquérito “foi atípico, mas (...) necessário”, e que “foi decisivo para salvar a democracia”. Por mais que a frase soe como uma admissão, a verdade é que o termo usado pelo presidente do STF para descrever essa característica do inquérito ainda foi muito suave em comparação com o festival de controvérsias acumuladas apenas no momento da instauração. Sem provocação do Ministério Público, Toffoli abriu o Inquérito 4.781 recorrendo a uma interpretação torta do Regimento Interno do Supremo (RISTF), que fez de todo o território nacional e dos ambientes virtuais uma extensão da “sede ou dependência do Tribunal”, como diz o artigo 43 do RISTF. E Moraes tornou-se relator não por meio do sorteio também previsto no Regimento Interno, mas foi escolhido a dedo por Toffoli.


O inquérito das fake news e seus “filhotes”, como o das “milícias digitais”, têm sido tudo, menos democráticos


Quanto a “salvar a democracia”, qualquer brasileiro sem antolhos ideológicos sabe o que aconteceu ao longo desses seis anos. O inquérito das fake news e seus “filhotes”, como o das “milícias digitais”, têm sido tudo, menos democráticos. Já serviram para censura a veículos de comunicação; para abolir a imunidade parlamentar; para violar a liberdade de expressão ao criminalizar o exercício legítimo da crítica a autoridades; para criar “crimes de opinião” e “crimes de cogitação” em conversas privadas; e para impor censuras prévias sem previsão no Marco Civil da Internet e claramente inconstitucionais. Tudo isso, ainda por cima, coberto sob um amplo sigilo, a ponto de muitos investigados nem sequer saberem por que foram censurados. E, neste último ano, a lista de arbitrariedades cresceu ainda mais graças ao bloqueio de uma rede social inteira, por mais de um mês, com direito à invenção de uma “obrigação de não fazer” sem lei que a determinasse, violando (mais uma vez) o artigo 5.º da Constituição.

Os abusos não terminam aí. O inquérito é marcado pelo acúmulo de funções, em que o STF (e, mais especificamente, Moraes) figura como vítima, investigador, acusador e julgador, e pela ampliação arbitrária do escopo das investigações – afinal, o que tem a ver o cartão de vacinação de Jair Bolsonaro (para ficar em apenas um exemplo incluído no inquérito) com “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”? E, entre o quinto e o sexto aniversários do inquérito, o Brasil ainda soube do uso extraoficial de estruturas do TSE, então presidido por Moraes, para abastecer os inquéritos no STF. Frases como “use a sua criatividade” e “quando ele [Moraes] cisma, é uma tragédia” mostraram ao país que, no fundo, não se trata de fazer justiça nem de buscar a verdade, mas de perseguir os opositores.

Em suma, o Inquérito 4.781 e seus derivados podem ser tranquilamente contados entre as maiores aberrações jurídicas que o país já produziu, e cujos efeitos nefastos incluem a criação de um clima generalizado de repressão à liberdade de expressão no Brasil. Esta garantia democrática, que já é artigo raro no país, pode recuar ainda mais se as práticas contra legem adotadas nestes últimos seis anos forem transformadas em lei, na chamada “regulação das mídias sociais” que o governo Lula e o STF tanto desejam. Ao contrário do que Barroso diz, o inquérito das fake news não salvou a democracia brasileira; ele está ajudando a soterrá-la.


Gazeta do Povo