A legalização de imigrantes às vezes os contamina com os vícios dos nativos
Eu estava em Paris durante o rigoroso lockdown da covid-19. Como prisioneiros, tínhamos permissão de sair para fazer exercícios durante uma hora por dia, contanto que não nos afastássemos mais de 1 quilômetro de nosso domicílio. Tínhamos de andar com um formulário para informar a hora em que tínhamos começado nosso passeio e alguns outros detalhes.
A polícia estava fazendo a supervisão da população ativamente. Certa vez, fui parado, e pediram meu formulário, cuja resposta a uma das perguntas eu havia omitido. Poderiam ter me multado em 135 euros imediatamente. Mas, como estava usando um paletó de tweed e estava a caminho dos correios (não havia entregas normais naquele momento), eu era obviamente um cidadão respeitável, me deixaram em paz. Um jovem vestido com o que poderíamos chamar de traje internacional de pobre não teve tanta sorte: ele teve que pagar.
“Bonjour, mon frère”, cumprimentou ele, usando aquele charmoso modo africano de se dirigir às pessoas.
Começamos a conversar. Ele era de Mali, na África Ocidental, e tinha sido um imigrante ilegal por nove anos antes de receber seu permis de séjour, regularizando sua situação no país.
Por acaso, estive duas vezes no Mali. A primeira vez quando atravessei a África de transporte público, de Zanzibar a Timbuktu. A segunda, para uma conferência do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas sobre como melhorar a imagem internacional da África. (Não sobre como melhorar a África, note bem, apenas a sua imagem.) Acho que posso dizer, sem muito medo de estar errado, que sou uma das poucas pessoas que já voaram em uma aeronave DC3 da Força Aérea do Mali com uma ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura (Nadine Gordimer), durante uma viagem paralela. Tamanho é o progresso que duvido que uma viagem pela África como a que fiz seja possível agora.
De toda forma, minha familiaridade com seu país criou um relacionamento instantâneo com o malinês. Ele estava na casa dos 40 anos, e seu maior desejo, agora que tinha residência na França, era visitar o Mali de novo antes de sua morte. O homem me contou que era totalmente analfabeto.
Com exceção do ano anterior, quando obteve sua residência, ele sempre trabalhou para ganhar a vida. Percebi imediatamente a facilidade com que deve ter sido explorado durante os nove anos de permanência ilegal no país. Analfabeto e sem status legal, ele tinha de aceitar quaisquer condições que lhe fossem oferecidas. Agora que estava legalizado, era mais difícil conseguir um emprego.
“Você ainda pode aprender a ler. Não é tarde demais”, disse eu.
“É tarde demais. Nunca vou aprender a ler”, respondeu ele.
Uma transformação curiosa
Senti com muita veemência a tragédia de sua vida. Se eu não tivesse outros compromissos, teria me oferecido para ensiná-lo a ler assim que o confinamento terminasse. (Como nunca havia ensinado ninguém a ler, eu nem tinha certeza de que seria capaz de fazer isso.) E me senti quase culpado por não me oferecer para ser seu professor, como se fosse meu dever ajudá-lo.
Nós nos despedimos de forma muito amigável — ele sem dúvida não poderia correr o risco de burlar as regras — e fiquei lisonjeado ao pensar que deve ter sido um prazer para o homem encontrar alguém que conhecia minimamente seu país de origem. Desde então, tenho pensado bastante no significado ou na importância de nosso encontro.
Acontece que, no meu trabalho, já tive muito contato com imigrantes ilegais na Grã-Bretanha. Individualmente, em geral, eu gostava deles e, em alguns casos, os admirava. Alguns dos jovens arriscaram a vida para chegar ali: viajaram milhares de quilômetros escondidos dentro ou embaixo de caminhões, muitas vezes passando por países que seriam hostis a eles se fossem descobertos, o que resultaria em prisão ou morte. Eles queriam principalmente trabalhar, o que é mais do que podemos dizer sobre muitos de meus compatriotas.
Os imigrantes ilegais que não tinham nada a ver com o Estado se saíam muito melhor psicologicamente do que aqueles que tentavam obter status legal solicitando asilo político. Este último grupo passou por uma transformação curiosa: jovens empreendedores que tinham corrido muito risco rapidamente se transformavam em reclamões quando lhes era oferecida a assistência do Estado.
Pessoas que atravessaram dois continentes da maneira mais perigosa logo se queixavam de não poder frequentar as aulas de inglês a 200 metros de distância se estivesse chovendo. Aqueles que decidiram continuar totalmente ilegais, mas procurar trabalho onde fosse possível, nunca passaram por essa rápida e surpreendente transformação psicológica. Racismo, xenofobia e ‘generosidade’
Ao conversar com imigrantes ilegais, sempre me solidarizei com sua situação individual. Eles vinham de países onde a vida era muito difícil e incerta. O Mali se deteriorou ainda mais desde que conversei com o malinês naquele banco. Mesmo que às vezes eles exagerassem as dificuldades que haviam passado, eu nunca sofri uma fração delas, e as dificuldades pelas quais passei foram puramente autoimpostas.
Mas qual é a relação entre a solidariedade individual pelas pessoas e a política a ser adotada em relação a elas? Enquanto eu pensava que gostaria de ajudar o malinês, também estava ciente de que não gostaria que milhões de pessoas como ele chegassem ao país. Nesse contexto, os números importam, mas o discurso público costuma se dividir de forma brutal, de modo que qualquer tentativa de limitar o número de entradas no país é retratada, automaticamente, como xenofobia na melhor das hipóteses e racismo na pior.
Vale notar que as pessoas que estão mais “generosamente” dispostas a receber imigrantes ilegais não propõem que sejam elas quem deve arcar com os custos econômicos dessa postura moral. Infelizmente, a brutalidade também existe no campo oposto, e acho que não preciso citar para os leitores o expoente mundial mais proeminente dessa brutalidade.
Mas qual é a relação entre a solidariedade individual pelas pessoas e a política a ser adotada em relação a elas? Enquanto eu pensava que gostaria de ajudar o malinês, também estava ciente de que não gostaria que milhões de pessoas como ele chegassem ao país. Nesse contexto, os números importam, mas o discurso público costuma se dividir de forma brutal, de modo que qualquer tentativa de limitar o número de entradas no país é retratada, automaticamente, como xenofobia na melhor das hipóteses e racismo na pior.
Vale notar que as pessoas que estão mais “generosamente” dispostas a receber imigrantes ilegais não propõem que sejam elas quem deve arcar com os custos econômicos dessa postura moral. Infelizmente, a brutalidade também existe no campo oposto, e acho que não preciso citar para os leitores o expoente mundial mais proeminente dessa brutalidade
Theodore Dalrymple, Revista Oeste