sexta-feira, 20 de setembro de 2024

'A mãe dos ricos', por Augusto Nunes

 

Foto José Cruz, Agência Brasil


Em março de 2014, cinco anos depois de premiado por Lula com uma toga de ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli reapareceu na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco para abrilhantar uma festa de confraternização organizada por ex-alunos e calouros recém-chegados. Nesse tipo de encontro, entre garfadas e tragos, são narrados acontecimentos que merecem registro na divertida antologia de ousadias, aventuras e extravagâncias envolvendo gente que estudou na velha Academia. No meio da celebração, Dias Toffoli resolveu elevar o humor dos convivas com o caso protagonizado por um colega de turma. “Uma vez, o Vladimir roubô um processo pra não tê o despejo”, decolou o narrador. Sorrindo de orelha a orelha, do queixo aos cabelos. 


(Mau começo. Um bom contador de casos jamais ri primeiro. Os mais tarimbados não riem nem depois das gargalhadas da plateia. Toffoli foi em frente. “Um amigo nosso, o Vlad… Não vamo dizê o nome dele. O Vladimir… o Vlad… não vamo dizê o sobrenome.” Outra pausa. O pequeno público tentava convalescer os socos no Código Penal, pontapés na linguagem culta e reticências bêbadas que prenunciaram o fiasco do desfile do bloco de vogais e consoantes. Já na passagem da comissão de frente, constatou-se que Toffoli não sabia o que sabe qualquer bedel da São Francisco: roubo é uma coisa, furto é outra.)

Roubo é o ato de subtrair um bem material de outrem por meio de violência ou ameaça. O furto é caracterizado pela tomada de um bem material sem que haja violência ou ameaça contra a vítima. Vladimir, com ou sem sobrenome, não roubou um processo. O que fez foi furtar o papelório que tratava de uma ação de despejo. De qualquer modo, documentos do Poder Judiciário foram afanados. 

Os atentados aos códigos legais e ao idioma não pararam por aí. Em pouco mais de três minutos, o ministro trocou um “onde” por “aonde”, ensinou que invasores de prédios alheios devem ser qualificados de “ocupantes” e festejou o final feliz: Vladimir escapou de punições graças ao pronto socorro de uma juíza amiga. 
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Em outubro de 2009, Lula resolveu que, aos 42 anos, o advogado impedido de comandar a menor comarca paulista tinha ilibada reputação e notável saber jurídico para agir no Supremo por mais 33 Tudo somado, tanto o parceiro Vlad quanto todos os colegas que participaram da ação criminosa cometeram crimes. Pior: ficou claro que um ministro do Supremo acha muito engraçadas delinquências que prejudicam e desmoralizam o Judiciário. Por essas e outras, Toffoli fracassou em 1994 e 1995 na dupla tentativa de virar juiz de Direito. Por outras como essas, Lula enxergou num incapaz capaz de tudo o bacharel que procurava desde criancinha. 

De lá para cá, esse paulista de Marília fez o que pôde para livrar do perigo de cadeia o próprio presidente da República, os amigos do presidente e seus filhos, os figurões do PT e seus comparsas homiziados em outras siglas. A folha corrida informa que, antes de ganhar a toga, Toffoli foi consultor jurídico da CUT, assessor parlamentar do PT na Assembleia Legislativa de São Paulo, assessor jurídico da liderança do PT na Câmara dos Deputados, subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência, chefe da equipe jurídica das campanhas presidenciais do PT em 1998, 2002 e 2006 e, a partir de março de 2007, chefe da Advocacia-Geral da União. 

Em outubro de 2009, Lula resolveu que, aos 42 anos, o advogado impedido de comandar a menor comarca paulista tinha ilibada reputação e notável saber jurídico para agir no Supremo por mais 33. 

É como se o treinador da Seleção Brasileira de Futebol escalasse como titular um jogador da categoria sub-20 reprovado em duas tentativas de subir para o time principal. Toffoli parecia pouco à vontade no Pretório Excelso até a divulgação do vídeo que registra o que disse o empreiteiro Marcelo Odebrecht no depoimento colhido pela Operação Lava Jato. A certa altura, um dos inquisidores pergunta quem é o personagem que aparece com o codinome “Amigo do Amigo do Meu Pai” no departamento de propinas da Odebrecht (hoje Novonor). 

“É o Toffoli”, responde Marcelo. Essa revelação ajuda a compreender a imediata e feroz contra-ofensiva movida pelo então presidente do STF. Sempre de costas para a Constituição, as leis e a sensatez, foi ele quem tentou censurar a revista Crusoé, inventou o inquérito do fim do mundo, promoveu revista Crusoé, inventou o inquérito do fim do mundo, promoveu revista Crusoé, inventou o inquérito do fim do mundo, promoveu Alexandre de Moraes a chefe de Polícia do Supremo Poder e proclamou informalmente a ditadura do Judiciário.

No momento, o amigo do Vladimir faz o diabo para entregar a empresários içados pela Lava Jato do pântano do Petrolão o produto do roubo bilionário que prometeram devolver em acordos de leniência que os livraram da gaiola. O valor total das multas que Toffoli suspendeu soma quase R$ 14 bilhões. O calote da J&F alcança cerca de R$ 10,5 bilhões, e a Novonor deixou de devolver R$ 3,5 bilhões. 

A sangria só começou. Confiantes nesse surto de compaixão dolarizada, dezenas de delatores premiados reivindicam o mesmo perdão. Nenhum deles teve de reduzir despesas com jatinhos, banquetes e mansões. Só não querem ficar longe do gabinete que faz chover dinheiro. E já estão de olho no que foi recuperado pela Lava Jato. Até 2022, segundo o Ministério Público Federal do Paraná, 43 acordos de leniência e 156 delações premiadas garantiram a devolução aos cofres públicos de R$ 24,5 bilhões. 

Nesta semana, caprichando na pose de quem ainda no berçário leu O Capital (em alemão), o ministro Fernando Haddad voltou a lamentar a insensibilidade dos super-ricos. “Está complicado taxar as grandes fortunas”, admitiu. Contou que essa turma vive inventando truques para livrar-se do Fisco, do qual não escapa um único e escasso brasileiro situado no universo que vai da classe média alta à imensidão de gente abaixo da linha da miséria. 

Igualmente criativo, Haddad pretende convencer os integrantes do G20 a se unirem num esforço internacional pela taxação dos multibilionários. Há uma opção menos cansativa e mais sensata. Haddad deveria pedir a Lula que o ajude a taxar a dinheirama que Toffoli vem devolvendo aos ricaços gatunos. Ou, então, pedir uma doação ao ministro que virou padroeiro dos pecadores multimilionários. O adjutório pode financiar uma campanha publicitária que elimine a dúvida angustiante: “arcabouço fiscal” é um novo videogame ou outro sistema defensivo criado por um técnico de futebol português?


Augusto Nunes, Revista Oeste