sexta-feira, 27 de setembro de 2024

'Tribunal das Decisões Cretinas', por J.R. Guzzo

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Momento mais sórdido de toda a sua história. Alguém, honestamente e com argumentos racionais, é capaz de citar outro? Essa infâmia, para tornar-se ainda mais infame, foi praticada por meio de uma operação de lavagem cerebral maciça. O tribunal, em parceria com o governo e com as suas esquadras de propaganda na imprensa, criou a maior peça de ficção jamais levada ao público pela política nacional. Transformou a própria desonra em ato heroico de defesa da “democracia”, contra uma potência estrangeira, ou algum outro disparate da mesma ordem. O linchamento do X no Brasil vai entrar nos registros históricos como um caso de psicose jurídica. 

Nada do que o ministro Alexandre de Moraes mandou fazer, apoiado pela assinatura coletiva do STF, tem relação coerente com o que está escrito nas leis brasileiras em vigor. Tudo o que fez veio de uma legislação inexistente, usinada em sua própria cabeça (e só ali) à medida que as necessidades de fazer algo iam aparecendo. Isso que eu quero está fora da lei? Então vamos usar a criatividade para ficar dentro. 

A partir daí, com o apoio dos jornalistas, dos juristas que são entrevistados pelos jornalistas e dos militantes do STF, os despachos do ministro se transformam em “ordens judiciais”. O ilegal vira obrigatório. O legal vira desafio “à Justiça”. Processos de demência raramente levam a alguma coisa racional com o passar do tempo. No caso da guerra de Moraes contra o X, violar a lei na primeira vez levou a violar também na segunda, depois na terceira — até se chegar ao ponto em que estamos hoje, onde a ilegalidade serial do STF se transformou em negação da inteligência, da moral e da ordem natural das coisas. 

No mais recente arranque de cachorro atropelado dessa história, como escreveria Nelson Rodrigues, nossa Suprema Corte de Justiça já está entrando na sua fase de Doutor Silvana, Lex Luthor e outros gênios do mal que querem controlar o universo. É realmente coisa de gibi: Alexandre de Moraes e os seus parceiros de plenário proibiram os 210 milhões de brasileiros de usarem uma tecnologia que se encontra à disposição do resto da humanidade.

A Polícia Federal e o inspetor Gonet, com a majestade do Ministério Público, já estão à caça desses novos inimigos da democracia. Se pegarem algum, Moraes vai lhe socar R$ 50 mil de multa no lombo. Aí já é aquilo que está dito em cima: o que era apenas ilegal está virando ordem de Napoleão de hospício. É o princípio geral pelo qual um piro leva de forma inevitável a outro, numa reação em cadeia que só vai parar quando acabar a matéria-prima que está gerando o encadeamento dos piros. 

O ministro, em sua primeira “ordem judicial”, proibiu mais de 20 milhões de brasileiros de se expressarem através do X — todo mundo, inclusive os que só usavam a rede para trocar selos ou pedir a demissão de Tite do Flamengo, e que são 90% dos usuários. Como os seus conhecimentos de tecnologia estão entre o triplo zero e o zero absoluto (veja mais detalhes na reportagem “Suprema ignorância digital” , nesta edição), ele não previu que a proibição podia ser jogada no lixo com a utilização da VPN, mecanismo que pode ser acionado em alguns segundos por qualquer analfabeto digital. 

Moraes foi então para cima dos que estão usando, ou podem usar, a VPN, com o aplauso intransigente da mídia amiga. Ficamos assim, no fim das contas: o STF do Brasil, em pleno século 21, torna crime o ato de acionar um recurso da tecnologia, como a luz elétrica, a tomografia de tórax ou a panela de pressão. 

É como se o Brasil estivesse na Alemanha nazista, onde a Gestapo metia na cadeia quem estivesse escutando as transmissões de rádio da BBC — mesmo um concerto de Mozart. É claro que ninguém pode utilizar nenhum tipo de instrumento para cometer um crime. Mas usar a VPN para ler uma receita de frango a passarinho ou escrever sobre o valor do salário mínimo na Áustria não é crime em nenhuma lei brasileira; parecido com isso, só na Coreia do Norte. 

Alguém deve ter lembrado ao ministro Moraes e aos jornalistas do seu serviço de apoio que a multa de R$ 50 mil pelo uso da VPN era uma cretinice espetacular: como punir alguém que tivesse usado o X, por exemplo, para falar bem do governo? 

É verdade que a lógica não tem impedido Moraes e os seus colegas do STF de condenarem pessoas que não cometeram crime nenhum — como, por exemplo, usar estilingues para dar um golpe de Estado. Mas, no caso da VPN, até eles acharam que a proibição e a multa já eram demais. Moraes baixou então uma emenda — e, como prevê — e, como prevê a Lei Geral das Decisões Estúpidas, a emenda saiu pior do que o soneto. Não se consertou nada: foi apenas uma confissão de incompetência por escrito. 

Em suas novas instruções ao público brasileiro e mundial, o ministro baixou o facho e explicou que só seria multado quem utilizasse a VPN de modo “extremado”. Estamos aí em pleno bumba meu boi do ordenamento jurídico deste país. Que raios vem a ser modo “extremado”? Ou é legal ou é ilegal; não existe nada “extremamente ilegal”, pois não existe na lei adjetivo ou advérbio para expressar opinião. 

Não há crime sem lei que o defina; não há pena sem haver crime definido. Não há lei que proíba o uso “extremado” da VPN, ou de qualquer outra coisa. Ninguém, portanto, pode ser punido pelo decreto de Moraes. A “lei da VPN” é apenas o último capítulo deste conto de terror legal; quando se pensa que o ministro cruzou a fita de chegada, ele engata um novo sprint e sai a toda de novo. 

Moraes, para começar, mandou o X censurar autores de postagens que ele acusa de “antidemocráticos”, ou traficantes de fake news, ou difusores de “ódio” e o resto da ladainha — não só o que já escreveram, mas o que iriam escrever. A ordem é contra os artigos 5º e 220 da Constituição Federal e, por isso, o X se recusou a cumprir. No ato, sem que os seus advogados pudessem dizer uma única sílaba em defesa da atitude do cliente, Moraes meteu uma multa de R$ 18 milhões em cima da plataforma. 

Mais: ameaçou prender a presidente da empresa, e sabe lá Deus quem lhe desse na telha — o que fez o X, como se poderia esperar, fechar os seus escritórios no Brasil para ninguém ser preso. O ministro exigiu então que Elon Musk, o dono da empresa, nomeasse imediatamente um novo presidente para o X do Brasil. Mas como ele poderia fazer isso, e quem aceitaria o emprego, se o nomeado poderia ser preso cinco minutos depois de assumir? 

Não nomeou ninguém, e Moraes sacou aí o cartão vermelho: mandou a Anatel bloquear as operações do X no Brasil. Criou-se de imediato uma situação insolúvel do ponto de vista da legalidade mais elementar. A alegação do ministro era a de que uma série de pessoas estava usando o X para atentar contra a democracia etc. Mas a plataforma era utilizada por pelo menos 20 milhões de cidadãos que não foram acusados de nada por Moraes, ou indiciados em algum dos seus inquéritos policiais perpétuos, ou eram parte de qualquer procedimento judicial dirigido por ele, legal ou ilegal. 

Nem poderiam mesmo ser, nem no Brasil do STF. No mundo das realidades, 40% de todas as postagens no X eram sobre esportes. Outros 20% tratavam do Big Brother. Menos de 10% falavam de política — e acusação, mesmo, só havia contra os perfis que Moraes queria tirar do ar. Como, então, todo esse mundo de gente poderia ser punido por um delito do qual ninguém foi sequer acusado? É justiça da Era da Pedra Lascada, mas é a isso, basicamente, que o STF reduziu o sistema judicial do Brasil. 

Moraes e seus colegas governam o país com a polícia e a força armada, mais o abraço de afogado de um governo sem povo, sem maioria no Congresso, sem voto e em situação de falência. Na desordem geral criada em relação ao X, o ministro ofereceu ao público um espetáculo de superação pessoal. 

Quando achavam que ele já tinha feito mais ou menos tudo, subiu a barra e expropriou os depósitos bancários da Starlink, que Musk também comanda, para pagar as multas aplicadas ao X — algo como transferir dinheiro do Itaú para cobrir obrigações da Alpargatas. Não são do mesmo “grupo econômico”? Para arrematar sua obra, o ministro criminalizou a VPN e está agora na multa por uso “extremado”. 

Cada uma dessas aberrações foi aplaudida na imprensa editada pela Secom como atos de “punição rigorosa” à “extrema direita bolsonarista”, de defesa da “soberania nacional” e de intransigência na aplicação da lei. 

O presidente Luís Roberto Barroso, por sua vez, sustenta que não há nada a reclamar, porque tudo o que Alexandre de Moraes fez foi executar decisões legais. “Simples assim”, disse ele na sua última Epístola aos Americanos, há pouco posta para circular em Nova York. O Imperador Calígula, como é do conhecimento geral, nomeou seu cavalo Incitatus para uma cadeira no Senado de Roma. Os barrosos da época acharam que foi uma “decisão legal” — da mesma forma como os de hoje acham que a eleição de Nicolás Maduro pelo STF da Venezuela também foi uma “decisão legal”. 

Moraes falou. Causa finita. A condenação do X pelo STF é um desses desastres que as empresas de seguros descrevem como “sinistro com PT”, ou perda total. A condenação de verdade nunca foi ao X, e menos ainda a Elon Musk, para quem R$ 18 milhões são dinheirinho de esmola para dar na porta da igreja. Também não foi aos desafetos que estão na lista negra de Moraes e que podem ser perseguidos por seus inquéritos e suas polícias até o Dia do Juízo Universal. Quem levou o castigo foram os 20 milhões de brasileiros que utilizavam o X para se expressar — e nunca fizeram mal nenhum a Moraes, nem a Barroso e nem aos jornalistas estatizados. 

Quanto ao ministro, em particular, nada nessa história promete acabar bem. Se ficar como foi até agora, será a história de selvageria legal descrita nas linhas acima. Se o X voltar, depois de cumprir as exigências do STF e como o regime em vigor está esperando, vai se dizer que Moraes dobrou a espinha de Musk, que “o bilionário” teve de voltar atrás e que o Brasil não é “terra de ninguém”. Mas o que o ministro realmente quis foi tirar da praça pública do X os cidadãos que se manifestavam nela; é esse o seu inimigo, sempre foi e sempre será. Se não conseguir isso, ele terá perdido — “simples assim”, como diria o ministro Barroso. 

Ainda mais simples é o fato de que Moraes provavelmente está jogando preto numa roleta que só tem vermelho. Ele se imagina capaz para comentar de regulamentar os movimentos da tecnologia chamando a Polícia Federal, dando ordens à Anatel e assinando despachos em seu gabinete. Mas do lado de fora do STF, onde hoje ele só vê Elon Musk, vai haver sempre alguém inventando alguma coisa tipo VPN, ou muito mais que a VPN, para inutilizar a sua repressão — e ele nunca vai inventar nada. 

A longo prazo, ou talvez até antes, é uma derrota anunciada.  



J.R. Guzzo, J.R. Guzzo