sexta-feira, 26 de maio de 2023

'O mundo dos negócios entra em campo', por Anderson Scardoelli e Edilson Salgueiro

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock/Divulgação


Clubes-empresas deixam para trás modelos de gestão ultrapassados e começam a tratar o futebol brasileiro como business


Torcedores de um tradicional time de futebol vão ao aeroporto para recepcionar o novo ídolo. O herói é ovacionado, recebe gritos de incentivo e posa para fotos segurando a bandeira do clube. A cena, que ocorreu no Brasil no início do ano passado, não tinha como protagonista um craque da bola. Em vez de um goleador recém-contratado, o alvo dos holofotes era o empresário norte-americano John Textor, que desembarcou no Rio de Janeiro para assinar um acordo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF) com o Botafogo.



John Textor | Foto: Vítor Silva/Botafogo

A história envolvendo Textor e o Botafogo não é a única relacionada às SAFs, sigla pela qual é conhecido o modelo de clube-empresa que ganha cada vez mais espaço no futebol brasileiro. De 2022 para cá, outros clubes de tradição — com conquistas internacionais e milhões de torcedores — recorreram ao novo modelo de gestão esportiva. O Cruzeiro é exemplo disso. Em abril do ano passado, o formato de sociedade da equipe mineira saiu de campo e foi substituído pela SAF liderada pelo ex-atacante Ronaldo Nazário, o Fenômeno.

Em setembro do ano passado foi a vez de o fundo de investimentos 777 Partners, com sede em Miami, assumir o controle do Vasco da Gama. Neste ano, Bahia e Coritiba trilharam o mesmo caminho. Há ainda outros cases de sucesso: fundado há mais de 20 anos como clube-empresa, o Cuiabá, de Mato Grosso, virou SAF em 2021. Já o RB Bragantino, em atividade no país desde 2008 e instalado em Bragança Paulista há dois anos, é parte de um projeto global da companhia austríaca de energéticos Red Bull.

A profissionalização dos clubes permitiu que antigos dirigentes fossem escanteados e abrissem espaço para executivos modernos. Antes de ser comprado por Ronaldo, por exemplo, o Cruzeiro enfrentava tempos difíceis: estava na segunda divisão havia três anos, tinha mais de R$ 1 bilhão em dívidas e sofria punições da Federação Internacional de Futebol (Fifa). A equipe não conseguia honrar compromissos fundamentais, como pagar pela compra de jogadores. No Vasco da Gama, por sua vez, os investidores assumiram uma dívida de aproximadamente R$ 700 milhões.


Ronaldo Fenômeno | Foto: Reprodução redes sociais

Mas quais são as diferenças entre os modelos antigos de administração e as SAFs? Os primeiros, conhecidos como associações civis, não têm fins lucrativos e permitem que cada clube tenha seu conjunto de regras, chamados de estatutos. Por meio deles são definidas as eleições para a presidência, para a diretoria e para os conselhos. Nesse sistema há uma espécie de “politização” da administração dos clubes. Interessados em benesses, conselheiros e diretores podem barganhar com o presidente. Este último tem como recompensa sucessivas vitórias nas eleições, fruto do apoio daqueles que receberam os “benefícios”. Pouco importam os resultados esportivos e o lucro.

As SAFs, por sua vez, transformam as associações civis sem fins lucrativos em empresas que buscam retorno financeiro. A Lei 14.193, promulgada em 2021, abre espaço para que investidores comprem de forma total ou parcial as ações de um clube de futebol — como ocorreu com o Cruzeiro e o Vasco, por exemplo. Assim como no mercado de capitais, os investidores das SAFs podem receber dividendos em caso de lucro. Mas também há regras. Uma delas é que o acionista-controlador de SAF não pode ter participação em dois clubes-empresas do Brasil. Para as SAFs que tiverem receita anual superior a R$ 78 milhões, tornam-se obrigatórias as publicações de “convocações, atas e demonstrações financeiras” dos clubes, que devem ser mantidas em seus respectivos sites por dez anos. Nesse modelo de gestão não há a possibilidade de barganha entre acionistas e executivos, porque ambos os grupos buscam os mesmos objetivos: resultado esportivo e lucro.

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As vantagens desse modelo de gestão também são visíveis dentro das quatro linhas do campo. A principal delas é a meritocracia. Sem dinheiro em caixa nem bons resultados esportivos, o Cruzeiro descartou jogadores com altos salários. O técnico Vanderlei Luxemburgo, por exemplo, que havia treinado o Fenômeno na Seleção Brasileira e no Real Madrid, da Espanha, foi demitido em meio à transição da SAF. Nem os principais ídolos da equipe foram poupados. Atleta que mais atuou com a camisa cruzeirense na história, com mais de 900 jogos, o goleiro Fábio não teve o contrato renovado por causa do salário.

Dívidas versus investimentos

Das SAFs brasileiras, o Cruzeiro não é o único a pensar em diminuir as dívidas. Segundo levantamento divulgado neste mês pela Sports Value, empresa especializada em marketing esportivo, a dívida total do Botafogo reduziu cerca de 15% de um ano para o outro, recuando para quase R$ 730 milhões. Ainda assim, o time carioca é o sexto do país no ranking dos maiores endividados. O líder nesse quesito é o Atlético Mineiro, com R$ 1,5 bilhão em dívidas. Este último discute a mudança de gestão para SAF e a consequente venda para grupos de investidores.

Também há espaço para investimento nas SAFs. Textor, do Botafogo, comprometeu-se a injetar R$ 400 milhões na equipe carioca. Na gestão futebolística do Vasco, a 777 Partners avisou que pode investir até R$ 700 milhões. Já o Grupo City, responsável pela SAF do Bahia, indicou a pretensão de aportar até R$ 1 bilhão. Mas não para aí. Apenas na soma das contratações de 2020 e 2021, o Red Bull investiu mais de R$ 100 milhões no Bragantino.

“A principal dificuldade enfrentada pelo mercado é a insegurança jurídica”

Apesar das vantagens dos clubes-empresas, o ex-repórter da Rede Globo e criador do projeto Lei em Campo, Andrei Kampff, afirma que somente a profissionalização não basta. “Importante é entender que o caminho indispensável para todos os clubes é o da profissionalização da gestão, investindo em conformidade, governança e integridade”, disse. “Esse caminho pode ser tomado no modelo associativo e no modelo empresarial. O modelo empresarial traz menos freios políticos e, com boa gestão, possibilidades maiores de atrair investidores.”


Josh Wander, Sócio da 777 Partners; Jorge Salgado, presidente do Vasco da Gama, e Juan Arciniegas, diretor de esportes, mídia e entretenimento da 777 Partners | Foto: Divulgação
Um bom produto para o futebol brasileiro

A presença das SAFs também é positiva para o Brasil em termos de mercado, avalia o advogado Gabriel Caputo, especialista em Direito Desportivo e sócio do escritório Caputo, Bastos e Serra Advogados. “Acredito que esse movimento de profissionalização e adoção de gestão empresarial por parte dos clubes é positivo para o futebol brasileiro enquanto produto”, observou. Caputo pondera, entretanto, que o país terá de lidar com a insegurança jurídica sobre o tema. Isso porque as decisões do Judiciário referentes às dívidas dos clubes, registradas ainda nos tempos de associação, podem afastar novos investimentos. É desta maneira que ocorre no mundo dos negócios: em ambientes nos quais as regras são incertas, os investidores preferem segurar os investimentos. “A principal dificuldade enfrentada pelo mercado na transformação das SAFs é a insegurança jurídica, visto que há dificuldade em torná-las responsáveis por dívidas contraídas nos modelos de gestão antigos”, disse. “Até o momento, existem decisões judiciais em ambos os sentidos. Essa insegurança gera críticas e pode desencorajar investidores, especialmente os estrangeiros.” 

A SAF também se apresenta como um bom produto fora de campo. Em artigo publicado em janeiro de 2022, por exemplo, quando as SAFs do Botafogo e do Cruzeiro já estavam encaminhadas, o professor e escritor Fernando Morgado e o pesquisador de marketing e estratégia Fernando Antunes ressaltam que os times do Brasil podem se inspirar em clubes do exterior para ganhar mais projeção — e dinheiro — por meio de ações midiáticas. De quais maneiras? “Venda de direitos de transmissão, de espaço nos uniformes, de nome de estádio, de placas no gramado e de posts nas redes sociais”, respondem Morgado e Antunes. “O conteúdo vem de muitos lugares (das coletivas de imprensa aos jogos), toma distintas formas (de podcasts a vídeos) e distribui-se de múltiplas maneiras (de redes de TV a plataformas de streaming). Isso ocorre tanto por veículos de terceiros, o que envolve a comercialização de direitos, quanto por canais próprios. Benfica, FC Porto, Manchester United e New York Yankees, por exemplo, criaram seus próprios canais de televisão: Benfica TV, Porto Canal, MUTV e YES, respectivamente.”


MUTV, o canal de televisão do Manchester United | Foto: Divulgação
Chance para projetos valiosos

Com esse valor midiático e com a expectativa de altos investimentos, as SAFs podem ajudar a impulsionar o valor de marca dos times brasileiros. Por que não trabalhar para compor a lista dos clubes — ou franquias esportivas — mais valiosos do mundo? No ranking divulgado em março pelo Sportico, site especializado em negócios no esporte, o Flamengo (modelo associativo) foi o único do país no top 50: 46ª posição, avaliado em US$ 540 milhões. Ou seja, o melhor brasileiro é 11 vezes menos valioso que o líder da lista, o Manchester United (Inglaterra), avaliado em US$ 5,95 bilhões. A diferença fica ainda maior quando consideradas as franquias das principais ligas esportivas dos Estados Unidos. Na lista de 2022 da revista Forbes, o Dallas Cowboys, da Liga Norte-Americana de Futebol Americano (NFL), foi avaliado em U$$ 8 bilhões. Esse valor se dá principalmente em razão dos bilionários acordos de direitos de transmissão.

 “No longo prazo, o grande ganho será com a recuperação dos clubes brasileiros”

Público para capitalizar recursos não falta aos times de futebol mais tradicionais do Brasil. Com exceção de Flamengo e Corinthians, que seguem como associações sem fins lucrativos, recentes estudos indicam potencial para aqueles que seguiram o caminho da SAF. De acordo com levantamento realizado em abril pela consultoria Quaest, o Cruzeiro conta com 5% de todos os torcedores do país. O Vasco da Gama, por sua vez, surge com 3%. Já o Bahia aparece com 2%. Ou seja, as torcidas desses três clubes-empresas se aproximam de 11 milhões, 6,5 milhões e 4 milhões, respectivamente. Essa base de adeptos deve fortalecer as SAFs no longo prazo, segundo Caputo. “O benefício imediato e ansiosamente esperado pelo torcedor é a injeção de capital por parte dos investidores para a contratação de grandes jogadores”, salientou. “O objetivo é conquistar títulos. No longo prazo, o grande ganho será a recuperação dos clubes brasileiros, o que só será possível com a adoção de modelos de gestão profissional. Isso pode ser implantado independentemente da natureza jurídica — associação ou SAF.”

Não basta se tornar clube-empresa

Tornar-se SAF pode ser o primeiro passo dos clubes brasileiros rumo à profissionalização. Mas não deve ser o único, ressalta Kampff. “O que não pode é acreditar que basta fazer a migração jurídica, do modelo empresarial para o empresarial, e pronto: seus problemas acabaram”, observou. “Não. A SAF não é ‘pó de pirlimpimpim’. É o caminho jurídico para implementar um novo modelo de clube.” 


Andrei Kampff | Foto: Divulgação

Caputo pensa de forma similar a Kampff. “O que pode fazer o país tornar-se ainda mais atrativo para receber investimento é a reestruturação dos clubes de futebol”, considerou. “Mesmo enquanto associação civil sem fins lucrativos, o que gera a valorização é a maximização do valor de investimento.”

Futuro: era do torcedor-investidor?

Divulgar trimestralmente os balanços financeiros, passar por auditoria externa e ter política de comunicação dos chamados fatos relevantes, como a mudança de presidente e a compra de uma outra empresa. Essas são algumas atribuições legais de companhias de capital aberto, com ações listadas na Bolsa de Valores. Com investimentos e gestão cada vez mais profissional, esse pode ser o futuro dos times de futebol brasileiros. “Recentemente, a Treecorp anunciou a aquisição de 90% das ações da SAF do Coritiba”, disse Caputo, ao lembrar da ascensão das sociedades anônimas no país. “Trata-se de um fundo de investimento que tem empresas como Zee.Dog e Tania Bulhões em seu portfólio. É o primeiro investimento desse grupo no mercado de futebol.”


Foto: Divulgação/Coritiba

O que surge como novidade no Brasil já é comum no exterior. O Manchester United, da Inglaterra, tem papéis negociados na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Juventus, Roma e Lazio contam com ações na Bolsa da Itália. O escocês Celtic tem capital aberto na Bolsa de Londres, enquanto o alemão Borussia Dortmund possui ativos na Bolsa de Frankfurt. Benfica, Porto e Sporting têm papéis na Euronext Lisboa.

“Cada vez mais clubes e investidores buscarão alternativas que melhor atendam às suas realidades”, disse Caputo, ao observar que o país tende a se aproximar da era do “torcedor-investidor”. “Dentro dessas opções, é possível que clubes brasileiros sejam listados na Bolsa de Valores. Para tanto, devem cumprir com todas as exigências legais.” Até lá, tem muito jogo pela frente.

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