quarta-feira, 31 de maio de 2023

'Expurgos', por Flávio Gordon

 

Ludmila Lins Grilo estava afastada das funções por decisão do Conselho Nacional de Justiça, em que respondia a dois processos.| Foto: reprodução/CNJ


“O Poder Judiciário seguirá firme e justo na defesa da Constituição e do Estado Democrático de Direito” (Alexandre de Moraes, 8 de fevereiro de 2023)


Quando li a sentença com que o desembargador José Arthur Pereira Filho, presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), justifica a aposentadoria compulsória da juíza Ludmila Lins Grilo, minha primeira reação, instintiva, foi rir. Afinal, com notável sem cerimônia, Pereira Filho escreveu que o motivo da punição à magistrada foi o “interesse público”. Pensei então: “Que coisa ridícula! Que truque mais besta!” 

O motivo real, obviamente, havia sido tão técnico quanto um slogan de assembleia estudantil, e passara tão despercebido quanto um elefante numa loja de porcelanas. Foi por suas críticas ao famigerado inquérito das fake news, e não por outra razão, que Ludmila virou alvo político do STF e de seu órgão para a administração forçada do consenso ideológico no meio jurídico, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Até uma pedra sabe disso.

Mas hesitei em continuar rindo, assim que me lembrei da minha definição de totalitarismo: um regime no qual somos obrigados a tratar o ridículo com reverência. Aparentemente, o desembargador convocado para expurgar Ludmila da magistratura – e, assim, garantir nesse ambiente a presença exclusiva da cultura política de esquerda –, queria que acreditássemos mesmo na tese de que o afastamento da juíza visara ao “interesse público”. E, assim protegidos da ameaça, éramos por ele convidados a admirar a decisão com uma expressão cerimoniosa no rosto, e no espírito uma cálida gratidão. 

Em vez de rir – algo que, aliás, está proibido –, devíamos mantermo-nos graves, compenetrados, assim como norte-coreanos aplaudindo Kim Jong-un, albaneses em êxtase diante da magnanimidade de Enver Hoxha, italianos comovidos com as caretas varonis de Benito Mussolini, ou brasileiros orgulhosos pelos dotes científicos do descondenado-em-chefe, atestados por dezenas de títulos de doutor honoris causa recebidos em universidades ao redor do mundo.

A decisão que, no dia 25 de maio de 2023, finalmente determinou a aposentadoria compulsória, foi a consumação de um processo de perseguição política iniciado há tempos. Em 21 de setembro de 2022, Ludmila tornou-se alvo de uma investigação no CNJ, instaurada por Luís Felipe Salomão, ministro corregedor do órgão. 

Ela era acusada de fazer “ataques” ao STF, de se associar a elementos subversivos como o jornalista exilado Allan dos Santos (também discípulo intelectual do filósofo Olavo de Carvalho, como a própria Ludmila, e investigado no inquérito das fake news) –, e de participar de eventos conservadores. Instaurada a reclamação disciplinar contra a colega, o corregedor notificava imediatamente Alexandre de Moraes, também relator do inquérito das milícias digitais

Dias depois, em 1º de outubro de 2022, Moraes ordenou que Ludmila tivesse todos os seus perfis em redes sociais retirados do ar, situação em que se encontra até o presente momento. Enviada, como tantos outros, ao gulag virtual, a juíza ficava impossibilitada de se defender da campanha de assassinato de reputação que lhe movia a imprensa filopetista e antibolsonarista. 

Não foge à regra (e talvez seja mesmo a sua expressão mais sórdida) sequer um veículo como o Estadão, que, embora hoje ensaie uma crítica anêmica aos abusos de autoridade do STF, jamais deixou de carimbar Ludmila como “olavista” e “bolsonarista”, estigmas por meio dos quais legitimou o uso da alta cúpula do Judiciário como arma de guerra contra aqueles que, assim como os militantes de toga, o partido da redação também enxerga como adversários políticos e estorvos socioculturais.


Até uma pedra sabe que foi por suas críticas ao famigerado inquérito das fake news que Ludmila virou alvo do STF e de seu órgão para a administração forçada do consenso ideológico no meio jurídico, o CNJ


Quando um jornal opta dessa maneira por estigmatizar na manchete a identidade política, religiosa ou cultural de uma pessoa, é porque pretende, primeiro, apontá-la como alvo à polícia política; e, em seguida, justificar qualquer abuso de autoridade cometido contra ela. Trata-se de passar a seguinte mensagem à opinião pública: contra esses, tudo é permitido; e se estão sendo cassados (e caçados), é porque merecem. 

Com base nessa parceria política entre redações e tribunais militantes, Ludmila foi inicialmente afastada pelo CNJ em fevereiro deste ano, com voto unânime de 15 integrantes do órgão, que seguiram a posição do corregedor. E esse processo culminou na decisão de ontem, que determinou o expurgo definitivo.

A propósito de expurgos, aliás, no clássico The Great Terror, que destrincha os julgamentos-espetáculos conduzidos por Stalin nos anos 1930 contra ex-camaradas, o historiador Robert Conquest observa uma interessante diferença entre os métodos de perseguição política nazista e comunista. Embora tivesse ficado bem impressionado com a determinação de Hitler durante a Noite das Facas Longas, em meados de 1934, quando o líder nazista comandou execuções extrajudiciais a granel contra rivais partidários e inimigos do partido, Stalin sabia que devia proceder de outro modo. 

Pelo menos até ali, o princípio estabelecido desde cedo no Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, segundo o qual a vontade individual do líder era a lei suprema, não tinha equivalente formal no Partido Comunista, cuja vontade, ao menos na teoria, estava sempre acima da de seus membros particulares.

Com efeito, forjados numa tradição assembleista e coletivista, os bolcheviques tinham de emular a legitimação de uma consciência partidária coletiva mesmo ali onde, de fato, o voluntarismo pessoal dava as cartas, como no caso de Stalin. Assim é que, mesmo quando esteve em condições de destruir seus críticos tão livremente quanto Hitler, o Czar Vermelho o fez sempre segundo a forma aparente de um processo judicial (farsesco) – parte do qual conduzido em segredo, e apenas concluído de forma espetaculosa –, acompanhado por algum tipo de justificativa pública, expressa nos jargões tradicionais da utopia revolucionária.

“A primeira lição por ele apreendida foi a de que não obteria facilmente de seus seguidores o consenso para a execução de membros do Partido com base apenas em ofensas políticas” – escreve Conquest sobre Stalin e seu meticuloso planejamento dos expurgos. Quando, num dos primeiros casos do período do Grande Terror, o velho bolchevique Martemyan Ryutin (1890-1937) e os membros do seu grupo, todos seguidores do anti-stalinista Nikolai Bukharin (1888-1938), foram expulsos do Partido sob a pecha de “degenerados, inimigos do comunismo e do regime soviético, traidores do Partido e da classe trabalhadora”, o objetivo era muito claro. 

Uma vez que o comunismo, o regime, o Partido e a classe trabalhadora encarnavam “o povo” soviético, e quiçá a humanidade inteira, punir a crítica ao stalinismo era, obviamente, defender – adivinha! – o interesse público. 

Assim como no Brasil de hoje é de “interesse público”, para proteger o tal “estado democrático de direito”, expurgar, perseguir, censurar, bloquear contas bancárias, confiscar passaporte, cassar mandatos, fazer busca e apreensão e prender conservadores. No entanto, o desembargador José Arthur Pereira Filho e seus companheiros de viagem não querem que a gente ria. Mas, pensando bem, eu vou.


Flávio Gordon é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e autor do best-seller A Corrupção da Inteligência: intelectuais e poder no Brasil (Record, 2017).


Gazeta do Povo