Líderes do G7 em reunião de trabalho do encontro em Hiroshima, em maio: enquanto exige mais do Mercosul, Europa avalia “pausa regulatória” em seu território para buscar reindustrialização.| Foto: Divulgação/G7
O presidente francês Emmanuel Macron foi pego numa contradição. Ao mesmo tempo em que tenta embutir no acordo comercial União Europeia-Mercosul um aditivo com duras exigências de sustentabilidade aos parceiros sul-americanos, tem pregado abertamente uma “pausa regulatória nos padrões ambientais” para reindustrialização do continente europeu.
“Já aprovamos muitos regulamentos ambientais em nível europeu, mais do que em outros países. Agora devermos implementá-los, e não ficar fazendo novas mudanças nas regras, para não corrermos o risco de perder todos os nossos parceiros industriais”, afirmou Macron antes de visita à região de Dunquerque, no norte da França, que pretende ser o “Vale das Baterias Elétricas” para automóveis na Europa.
Em outro momento, Macron disse: "A prioridade dos grandes investidores, sejam data centers, montadoras de automóveis ou grandes fábricas de baterias, americanos, asiáticos ou europeus, é a velocidade. Você pode oferecer a eles bilhões em ajuda, se você demorar dois anos para investigar um procedimento empilhando metros cúbicos de papel, o fracasso é garantido”.
Por trás desse despertar europeu para a reindustrialização, do qual Macron tem sido o principal porta-voz, está o medo de um êxodo maciço de investimentos para os Estados Unidos, que decidiram jogar pesado para ganhar protagonismo na transição para uma economia verde.
O Ato de Redução de Inflação (IRA), lançado por Joe Biden em agosto de 2022, busca nacionalizar e controlar as diretrizes da bioeconomia, despejando um pacote de US$ 500 bilhões em incentivos fiscais e isenções de impostos para investimentos em projetos de energia limpa e redução de emissões, desde que tocados em solo norte-americano.
“Os americanos estão preocupados com suas vulnerabilidades em relação aos chineses. Grande parte dessas tecnologias são chinesas, e os EUA se deram conta que isso no futuro pode ser uma ameaça à sua hegemonia geopolítica internacional", aponta Daniel Vargas, jurista e coordenador do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (FGV).
"O IRA é um projeto de subsídios multibilionários, com uma espécie de divisão do mundo entre países amigos e que podem participar desses benefícios e outros que não podem. Efeito disso está sendo uma diáspora da vanguarda empresarial do mundo para os EUA, em particular da Europa", acrescenta.
Exemplo dessa diáspora, fomentada por amplos subsídios, é a decisão da Volkswagen de suspender a construção de quaisquer novas fábricas de baterias elétricas na Europa, dando prioridade para projetos nos EUA, onde calcula que poderá receber até US$ 10 bilhões em incentivos. E outras multinacionais tendem a seguir o mesmo caminho, para não perderem o bonde de isenções de impostos do Tio Sam.
Europa quer ir além do papel de polícia da transição verde
Em reação, os líderes do Velho Continente decidiram reorientar o seu green deal para apostar não mais somente num esforço de polícia regulatória e moral da transição verde, mas também em fazer da região um polo de desenvolvimento tecnológico avançado. E assim estão criando eles mesmos novos pacotes de subsídios e estratégias para manter e atrair empresas de ponta, realocando 500 bilhões de euros que antes levavam a rubrica de incentivo à recuperação pós-Covid e independência energética em relação à Rússia.
Essa disputa euro-sino-americana deveria acender um alerta no Brasil, diz o pesquisador da FGV, para não aceitar “de mão beijada” compromissos com a agenda ambiental e climática que partem de pressupostos da realidade de outros países.
“Às vezes dá sensação de que as grandes potências estão querendo criar uma nova divisão internacional do trabalho, em que elas lutam pelas fronteiras da tecnologia e da economia prósperas do amanhã, ao mesmo tempo em que impõem restrições ao resto do mundo, tolhendo as oportunidades dos países de perseguirem uma rota de crescimento", avalia Vargas. "É como se fosse assim: para eles, tecnologia de ponta, progresso, avanço. Para nós, árvores. Essa não é uma divisão saudável, não é uma rota nem possível nem desejável.”
Faça o que eu falo, não faça o que eu faço. A contradição no discurso do presidente francês, querendo aliviar exigências ambientais domésticas enquanto aperta o parafuso para os futuros sócios do Mercosul, escancara intenções que antes ficavam nas entrelinhas.
Padrões europeus não servem para Hemisfério Sul
Em 2021, vazou um side paper francês propondo uma série de exigências e contrapartidas ambientais aos parceiros do Cone Sul, muito além do texto do acordo comercial negociado e concluído em 2019. À época, fontes do governo brasileiro disseram que a proposta era praticamente uma ata de rendição às condicionantes criadas pela política do green deal europeu, a partir de uma perspectiva do hemisfério Norte, sem levar em conta as especificidades da agricultura tropical.
Por não terem mais estoques de terras, os europeus raciocinam que se alguém plantar um pé de soja na Itália, isso significa retirar uma árvore ou deixar de produzir alimento em outro país do bloco. E estendem essa lógica para realidades completamente diferentes, como a do Brasil, que, observa Vargas, “ainda tem pelo menos o dobro de áreas abertas e degradadas que podem ser incorporadas à produção, pode tirar duas ou três safras ao ano do mesmo solo, e com ganhos de produtividade contínuos”.
“Essa relação de substituição necessária não se aplica à nossa realidade. Mas eles veem como se o mundo fosse assim. Logo, se tem um aumento de produção de carne ou de frango no Brasil, é porque a gente foi tirar área da Amazônia para colocar o frango ou a carne. Não sabem que nossa realidade é totalmente diferente”, aponta o professor da FGV.
É esse equívoco que teria levado os europeus a passarem por cima do Código Florestal brasileiro na lei aprovada em abril contra o desmatamento. As novas regras, que ainda precisam ser ratificadas pelos países-membros, exigirão que os importadores certifiquem que produtos como café, carne bovina, soja e outras commodities não foram produzidos em terras desmatadas após 2020.
Com isso, a Europa simplesmente ignora que o Brasil tenha enorme reserva de áreas disponíveis para conversão à agricultura. “Vai ter um conflito, eles não estão respeitando a lei nacional”, avaliou em recente entrevista o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Caio Carvalho, que afirma "não ter dúvidas" de que o governo brasileiro levará a questão à Organização Mundial do Comércio (OMC).
Estrada a caminho da Serra do Quilombo no Piauí: Brasil ainda tem amplos estoques de terras agricultáveis.| Rogério Machado/Arquivo/Gazeta do Povo
Cláusulas da UE não foram debatidas no foro adequado
O pacote adicional de exigências ambientais ao Mercosul, que em 2021 parecia apenas um “capricho francês”, reapareceu agora com a chancela da Comissão Europeia, que enviou o side paper para a diplomacia de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai e outros países associados do Mercosul. Dentre outros pontos, Bruxelas propõe adendos aos termos do tratado antes mesmo de sua ratificação para contemplar cláusulas que obrigam a responder a “quaisquer decisões futuras” tomadas pela ONU em relação ao Acordo Climático de Paris e outros painéis internacionais.
“Estão tentando transformar os acordos voluntários de Paris em compromissos obrigatórios, o que está muito além do escopo de uma carta paralela”, reagiu uma fonte da diplomacia brasileira ouvida pelo jornal britânico "Financial Times".
Sob a justificativa de enfrentar a “tripla crise planetária de mudança climática, perda de biodiversidade e poluição”, e citando uma série de conferências e painéis globais para corroborar a tese (IPCC, Rio +20, ODS, COPs, etc), o documento alega que 90% do desmatamento mundial é devido à expansão agrícola, e fala em urgência no atendimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU que trata de pôr fim ao desmatamento e restaurar florestas degradadas.
A carta é apresentada como "instrumento conjunto" e cita o artigo 31 da Convenção de Viena sobre Tratados Internacionais para reivindicar a condição de desdobramento legítimo do acordo comercial cujo texto já foi fechado entre as partes.
Macron propõe um peso e duas medidas
Ironicamente, a side letter “tromba” com o discurso de reindustrialização doméstica de Macron. Enquanto para o Mercosul o argumento é de que não se deve “rebaixar os padrões ambientais ou trabalhistas com a intenção de atrair comércio ou investimento estrangeiro”, ao falar para os conterrâneos Macron vai em sentido oposto, e alega que a França não pode se desindustrializar e que a Europa, em termos de regulamentos ambientais, “está à frente de americanos, de chineses e de qualquer outra potência mundial”.
O líder francês tenta resistir a uma nova onda de proibição de pesticidas, alertando que isso colocaria em risco a segurança alimentar de longo prazo no continente.
Mas isso é na Europa. Em relação aos parceiros sul-americanos, o documento adicional pretende que haja “apresentação e atualização periódica de uma comunicação de adaptação” aos termos do Acordo de Paris, e ainda estabelece a necessidade de “ação legislativa, regulatória e política com o objetivo de tornar os fluxos financeiros consistentes com um caminho para baixas emissões de gases de efeito estufa e desenvolvimento resiliente ao clima”. Para isso, os blocos se comprometeriam a aderir às metas nacionais previstas na Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).
O documento adicional europeu não entra no mérito de compensações, apenas de exigências: “Rastreabilidade aprimorada, transparência e devida diligência serão os principais meios para desenvolver cadeias de suprimentos sustentáveis. Esta será uma prioridade durante a implementação e, para isso, (UE e Mercosul) promoverão e apoiarão ações do setor público e privado”, diz a side letter.
Documento europeu não ameniza críticas das ONGs
Apesar de tentar impor uma série de obrigações “verdes” aos parceiros, o documento adicional europeu não agradou também a ONGs e ambientalistas. O Instituto Ambiental de Munique contratou um parecer jurídico que concluiu que a declaração adicional “não altera o contrato e não resulta em quaisquer regras ou controles adicionais”.
A ONG alemã alerta: “Nos próximos dias, o governo federal tentará convencer você e os parlamentares de que a floresta pode ser salva com esta declaração adicional. Não vamos cair nessa. Iniciaremos um movimento em toda a Europa que deixará inequivocamente claro: não permitiremos que nossa saúde seja ameaçada e a biodiversidade e a floresta tropical sejam destruídas. Nos solidarizamos com os trabalhadores da América Latina e os agricultores e agricultoras da Europa!”.
No início de maio, eurodeputados integrantes do Comitê de Comércio Internacional do Parlamento Europeu estiveram no Brasil para tentar destravar a criação da zona de livre comércio.
“Em geral, tem uma irritação sobre a ‘side letter’, mas eu queria explicar por que ela existe. Quando o acordo do Mercosul foi concluído e nós entramos no processo de ratificação com o parlamento europeu, nós decidimos que não poderíamos fazer isso porque a Amazônia estava incendiando e nossa opinião pública nos empurrou em outra direção. É vital que a gente saiba que o acordo do Mercosul sobreviva tanto no Mercosul quando na Europa, é sempre sobre nós dois, não um contra o outro”, disse a belga Kathleen van Brempt.
Convite para europeus conhecerem a Amazônia
Do lado brasileiro, o senador Celso Russomano (Republicanos-SP), vice-presidente da representação brasileira no Parlamento do Mercosul, convidou os eurodeputados a conhecerem a Amazônia “para entender melhor o que se passa lá antes de cobrar de nós a intensificação do carbono zero”.
Em relação aos aditivos de sustentabilidade pretendidos pelos parceiros europeus, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS), que preside a representação parlamentar no Mercosul, enfatizou que é prudente “não reabrir acordos amplamente negociados”. “Conforme o tempo evolui, a situação muda. Se formos refazer a toda hora o que foi acordado, não vamos avançar. Pedimos celeridade nesse processo”, defendeu.
Para Vargas, da FGV, o que está em jogo são “as portas do futuro”. “O Brasil tem que defender, para começo de conversa, a sua realidade. E a partir daí também defender os seus interesses. O verde não é só uma cor, é um critério que vai definir quem tem maior ou menor possibilidade de crescimento com sustentabilidade”, sublinha.
O tratado com o Mercosul, se efetivado, estabelecerá a maior área de livre comércio com o bloco europeu, abrangendo 780 milhões de pessoas. A previsão é zerar em dez anos as tarifas de 92% dos produtos enviados pelo bloco sul-americano para o europeu, e de 91% dos mandados de lá para cá. Para itens considerados sensíveis, como carros e autopeças, esse prazo será de 15 anos.
Marcos Tosi, Gazeta do Povo