Montagem Revista Oeste sobre foto da fachada do prédio da Assembleia Legislativa de São Paulo/Foto: Marco A. Cardelino
Ao custo de mais de R$ 1 bilhão por ano, a maior Assembleia da América Latina gasta boa parte desse valor com folha de pagamento e penduricalhos para os parlamentares
Que tal dar expediente apenas às quartas e quintas-feiras, do meio-dia às 17 horas, e ganhar um salário de quase R$ 30 mil por mês? Pois esse emprego não só existe como é bancado por todos os pagadores de impostos paulistas. Essa é a rotina dos 94 deputados estaduais da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) — realidade semelhante à dos parlamentares de outros Estados da federação.
No restante da semana, o imponente prédio da Alesp, com 16 metros de altura e 36 mil metros quadrados, em frente ao Parque Ibirapuera, um dos endereços mais nobres da capital paulista, fica praticamente deserto. Nos outros dias, é comum encontrar apenas funcionários da limpeza e seguranças andando pelos longos corredores revestidos de granito cinza e mármore branco com estruturas de vidro e metal. Sem muitos afazeres, esses servidores conversam entre si ou passam o tempo vendo exposições de arte sem espectadores nas inúmeras galerias do local. Também não é raro encontrar funcionários da Casa desfrutando dos serviços de um Poupatempo quase exclusivo, que pouquíssimos paulistanos conhecem, localizado no subsolo do Parlamento. O tempo de espera por atendimento nessa unidade é de, no máximo, seis minutos.
A alguns metros dali, em frente ao estacionamento, também há uma clínica de massagem que atende deputados e servidores. O estabelecimento fica ao lado de uma loja com roupas e acessórios femininos, que divide espaço com uma farmácia. Ao subir um lance de escada, depara-se com um belo restaurante envidraçado. O prato mais barato sai por volta de R$ 30. Os espaços são alugados para a iniciativa privada. Dizem nos corredores que há promoções especiais para parlamentares e suas mulheres.
Há também um restaurante que fica no novo anexo construído para abrigar gabinetes mais modernos que os da antiga ala da Casa. Todos ficam defronte a uma varanda com vista para um átrio arborizado da Alesp. Os critérios de distribuição não são nada republicanos. Não há sorteios. Os deputados com mais tempo de casa têm preferência, enquanto os novatos ficam com as sobras. Um parlamentar experiente disse que os melhores gabinetes viram moeda de troca em negociações por votos em projetos de lei ou acordos.
A alguns metros dali, ao andar em direção à entrada e depois de passar por uma unidade do Fran’s Café, chega-se ao Plenário Juscelino Kubitschek (JK), o principal da Casa. Há duas entradas: uma para populares e jornalistas, e outra para os parlamentares. O Salão dos Espelhos, exclusivo para os deputados e seus assessores, antecede a entrada ao plenário. Ele parece muito maior que seu tamanho real, por causa do tamanho dos vidros — todos muito bem polidos. Em meio aos sofás e poltronas de couro preto milimetricamente posicionados em frente a tapetes vermelho-carmesim, os parlamentares articulam acordos e recepcionam prefeitos e outras autoridades.
As sessões no JK são transmitidas pela TV Alesp, que alcança apenas 16 dos 645 municípios do Estado. Não se sabe quantas pessoas assistem à TV. A estrutura é grande e bem guarnecida, com equipamentos de última geração e baias para vários jornalistas. O salário desses profissionais pode chegar a R$ 11 mil. Esse departamento também veicula as audiências das 22 comissões da Alesp que tratam de temas que vão dos “Assuntos Desportivos” ao “Turismo”.
Não são raros os dias em que toda essa estrutura é usada para veicular sessões com poucos parlamentares ou apenas um. Na primeira sexta-feira de maio, por exemplo, o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) abriu uma sessão, foi o presidente e discursou durante 15 minutos para um plenário completamente vazio sobre a aprovação na Câmara dos Deputados de um projeto que garante igualdade salarial para homens e mulheres. Embora Suplicy estivesse sozinho no plenário, foi registrado o mínimo de assinaturas de presença exigidas pelo regimento para a abertura de sessão (14 rubricas registradas).
No ano passado, a Alesp custou quase R$ 2 bilhões aos pagadores de impostos de São Paulo, cerca de R$ 600 milhões só com folha de pagamentos
Está previsto ainda um aumento da verba para divulgação dos trabalhos legislativos. O valor para este ano é de R$ 42 milhões, quase o dobro do que foi usado em 2022: R$ 24 milhões. Os gastos são voltados para serviços variados, como produção de conteúdo, torre de transmissão e legendas. Parte importante dos repasses vai para a Fundação para o Desenvolvimento das Artes e da Comunicação, responsável pela TV Alesp há mais de uma década.
Alesp em números
No ano passado, a Alesp custou quase R$ 2 bilhões aos pagadores de impostos de São Paulo, cerca de R$ 600 milhões só com folha de pagamentos. Para ter uma ideia da dimensão das despesas, entre 2019 e 2022, os parlamentares gastaram R$ 85 milhões com gabinete — a maioria dos funcionários é indicação política. Grande parte dos gastos ocorreu em 2022, um ano eleitoral, quando os deputados registraram R$ 25 milhões em despesas do tipo.
Os maiores gastos de gabinete são com locação de imóveis, serviços gráficos e aluguel de outros veículos — mesmo cada parlamentar tendo à disposição um Corolla XEi 2022 (um usado não custa menos de R$ 100 mil), com combustível pago com a cota parlamentar. Há dias em que o automóvel nem sequer sai do estacionamento. Não é raro observar motoristas fumando e tomando café nos bancos em frente aos carros, aguardando o chamado de parlamentares para compromissos externos.
A Casa, que aprovou uma lei do então governador João Doria para extinguir estatais inteiras e até a Fundação Zoológico, é a mesma que mantém um setor inteiro cuja utilidade é questionada até por parte dos deputados. Trata-se do Núcleo de Avaliação Estratégica (NAE), criado em 2015 pelo então presidente Fernando Capez (União Brasil, na época tucano), com o objetivo de “avaliar o Poder Executivo”. O departamento é o quinto com mais funcionários lotados, um total de 50, cujos salários podem superar os R$ 26 mil. As nomeações são todas feitas por indicação da Mesa Diretora, que por 30 anos foi do PT e do PSDB. Tucanos ficavam com a Presidência; petistas, com a Primeira Secretaria, responsável pela administração da Alesp.
Com uma estrutura física pequena, o NAE já teve registros de exoneração de funcionários fantasmas e relatos de “rachadinhas”, a prática em que os funcionários devolvem parte do salário aos deputados. A assessoria da Alesp argumentou que o espaço físico é “suficiente”, uma vez que membros do grupo também prestam serviços externos. A Casa, porém, não forneceu nenhum dado sobre os tais serviços externos ou de produtividade.
Em 2019, a então deputada Janaina Paschoal (PRTB) e outros três parlamentares chegaram a propor a extinção do NAE. Segundo Janaina, o custo mensal, na época, era de R$ 850 mil. A jurista criticou o tamanho da sala, de apenas 10 metros quadrados, e a falta de computadores para tantas pessoas “trabalhando”, além de ações ineficazes. O departamento, contudo, permanece em funcionamento.
Casa carimbadora do governador
Responsável por criar, revogar e alterar as leis do Estado, a Alesp ficou conhecida nos últimos 30 anos como uma extensão do Palácio dos Bandeirantes e Casa “carimbadora” de decretos do governador da vez (todos tucanos). Isso se deu por dois motivos: 1) a aliança velada entre deputados do PSDB e do PT, que, apesar da disputa eleitoral, davam as mãos tão logo a venciam para se revezar no comando da Alesp; 2) a atribuição limitada constitucional da Casa, visto que muitas leis no país são federais ou municipais. Com um campo de trabalho reduzido e sem fiscalizarem o Executivo como deveriam, os deputados acabam se debruçando sobre temas irrelevantes e transformaram o Parlamento estadual num cabidão de empregos.
Um dos poucos atos relevantes da Alesp foi a cassação do ex-deputado Arthur do Val, o Mamãe Falei, que caiu em desgraça após a divulgação de áudios sexistas sobre mulheres ucranianas em vulnerabilidade. No que diz respeito a projetos importantes aprovados, há a Lei Bruno Graf, que desobriga a apresentação de passaporte sanitário em estabelecimentos. Aprovada neste ano, a medida passou a valer quando a pandemia de covid-19 já arrefecera e a economia voltara a funcionar. Antes disso, os parlamentares batiam boca no JK para, entre outros temas, discutir se punham ou não fim à meia-entrada de estudantes e idosos nos cinemas. Recentemente, os parlamentares aumentaram em 50% o salário do governador Tarcísio de Freitas, impactando todo o funcionalismo estadual. Prioridades em tempos de crise.
Com reportagem de Camila Abdo
Leia também “Sem direito de defesa”
Revista Oeste