sexta-feira, 1 de julho de 2022

'Um oásis do conhecimento', escreve Gabriel de Arruda Castro

Campus da Faculdade Hillsdale, em Michigan | Foto: Divulgação Departamento de Relações Públicas de Hillsdale


A faculdade de Hillsdale é reverenciada pelos conservadores norte-americanos simplesmente por manter a missão histórica de ensinar os alunos a perseguirem o que é “bom, verdadeiro e belo”


Em maio de 2020, quando a pandemia de covid-19 ainda parecia uma ameaça tão assustadora quanto desconhecida, a governadora do Estado de Michigan, a democrata Gretchen Whitmer, determinou que todos os eventos com mais de cem pessoas fossem cancelados — mesmo que ao ar livre, mesmo que com o uso de máscaras. Hillsdale College, uma faculdade localizada numa pequena cidade de 10 mil habitantes no sul do Estado, decidiu desafiar a ordem da governadora. Em vez de cancelar sua cerimônia de formatura, manteve o evento, com banda de instrumentos de sopro, entrega de diploma, oradores e a presença das famílias na plateia. “Nem durante a Guerra Civil nossa faculdade cancelou a formatura”, justificou Larry Arnn, presidente (equivalente ao reitor) de Hillsdale. “Não poderíamos deixar de realizar a cerimônia, tomando todos os cuidados necessários.”

Não foi a primeira vez que Hillsdale desafiou poderes superiores. A faculdade, que tem cerca de 1,5 mil alunos e foi criada em 1844, ganhou o noticiário nacional nos anos 1980, quando, depois de uma queda de braço com o governo federal (envolvendo a obrigatoriedade de manter uma base de dados com a raça de cada estudante), a faculdade resolveu abrir mão de qualquer subsídio estatal, mesmo que indireto. Em um país onde 92% dos universitários usam empréstimos federais para pagar pelo curso superior, era uma aposta arriscada. Mas o saldo final foi positivo: Hillsdale começou a atrair doadores, que, sem nunca ter sido alunos da faculdade, resolveram contribuir com a instituição de ensino. Hoje, enquanto grandes universidades norte-americanas se afogam em dívidas, Hillsdale opera no azul e tem caixa suficiente para garantir muitos anos de funcionamento (além de oferecer assistência financeira a 98% de seus alunos). O orçamento de 2022 é de aproximadamente US$ 900 milhões (R$ 4,7 bilhões). A Unicamp, que tem 35 mil alunos, possui uma dotação orçamentária de R$ 3,7 bilhões para este ano.

Capela de Hillsdale: tamanho de catedral e estilo clássico | Foto: Divulgação Departamento de Relações Públicas de Hillsdale

Em Hillsdale, o histórico de desconfiança do governo vem de longe. Fundada por batistas abolicionistas, a instituição foi a faculdade de Michigan que mais teve alunos mortos em combate durante a Guerra Civil. Sessenta deles perderam a vida, todos lutando contra o sul e a favor do fim da escravidão. Hillsdale foi também a segunda faculdade do país a oferecer às mulheres a oportunidade de obter um curso superior completo, de quatro anos. Hoje, mais pela marcha à esquerda da educação norte-americana do que por uma guinada à direita da pequena faculdade de Michigan, Hillsdale é reverenciada pelos conservadores norte-americanos. Em certa medida, simplesmente porque manteve sua missão histórica de ensinar os alunos a perseguirem o que é “bom, verdadeiro e belo.”

Currículo clássico

Tradicionalmente, as universidades europeias e norte-americanas tinham um amplo currículo comum a todos os estudantes, que só depois de cumprir esses requisitos podiam escolher uma área na qual se aprofundar. A partir do século 19, esse sistema foi sendo gradualmente abandonado, em favor de um modelo compartimentado, em que estudantes de cursos diferentes não convivem em sala de aula — um aluno de física só precisa aprender aquilo que é estritamente necessário para ser um físico competente. Mas, em Hillsdale, as coisas ainda acontecem à moda antiga. Todo aluno precisa cumprir um currículo obrigatório, que geralmente toma os dois primeiros anos da graduação e inclui cursos de filosofia, teologia, história, retórica, matemática, artes e ciências naturais, além de uma matéria sobre a Constituição dos Estados Unidos. O princípio por trás desse sistema é simples: os estudantes universitários precisam ter acesso abrangente ao universo do conhecimento, e só então se tornar especialistas em uma área específica. A ideia não é simplesmente formar bons trabalhadores (e muito menos militantes políticos), mas seres humanos completos e virtuosos.

Aula ao ar livre | Foto: Divulgação Departamento de Relações Públicas de Hillsdale

Outro diferencial de Hillsdale é sua capacidade de manter princípios cristãos tradicionais e, ao mesmo tempo, receber alunos de igrejas diferentes. Apesar da origem batista, a faculdade hoje é cristã não denominacional (prática da fé cristã sem seguir nenhuma denominação cristã específica). O corpo estudantil é dividido quase que meio a meio entre católicos e protestantes. “Como um protestante praticante e estudante de religião em Hillsdale, pude ter um diálogo construtivo com meus amigos católicos”, disse Ethan Greb, que se formou em 2019 e agora cursa um mestrado em teologia em outra instituição de ensino.

A religião ocupa um espaço importante no campus — literalmente. Dois anos atrás, Hillsdale inaugurou sua capela, que na verdade mais parece uma catedral. O prédio, em estilo clássico, impressiona pela grandeza. Uma das dificuldades foi achar uma empresa de construção capaz de levar um projeto assim adiante, já que foi a primeira construção do tipo em sete décadas nos Estados Unidos. Quem visita o local tem a chance de entrar em um templo que, por um lado, parece ser um prédio centenário, por outro, ainda carrega o cheiro e o brilho de uma obra recém-inaugurada. A capela, aliás, foi parcialmente financiada por uma doação de US$ 12,5 milhões (R$ 65 milhões, em valores de hoje), vinda de um único casal.

Em primeiro plano, está o prédio principal do campus. A catedral está atrás, depois do gramado | Foto: Divulgação Departamento de Relações Públicas de Hillsdale

Ethan Greb ganhou mais do que um diploma em Hillsdale. Foi lá que ele conheceu Caroline, que viria a ser sua mulher. A jovem pintora, formada em belas-artes, diz que o modelo de ensino da faculdade é difícil de encontrar em outro lugar. Ela diz que a ênfase de Hillsdale no padrão clássico de arte é “muito, muito rara” em outras instituições de ensino. “Na maioria das vezes, as escolas de arte começam com ‘expresse a si mesmo’ e ‘experimente’, antes de fornecer as habilidades técnicas de desenho e pintura. Hillsdale faz o contrário: você desenha, pinta, esculpe, desenha e pinta novamente até estar equipado com as habilidades certas para poder expressar algo bem”, diz Caroline, que hoje se divide entre cuidar da filha bebê e atender os clientes interessados em adquirir seus quadros.

Conexões políticas

Excelência acadêmica não é tudo. Hillsdale tem também boas conexões políticas. O presidente Larry Arrnn, no cargo desde 1999, se dá bem com a elite do Partido Republicano e chegou a presidir uma comissão criada pelo presidente Donald Trump para promover o ensino da história norte-americana. Arnn conversa com alguma frequência com Mike Pence, vice-presidente na gestão de Trump (e que foi o orador principal da formatura de Hillsdale em 2018). Pence não foi o primeiro político de destaque a visitar o campus da universidade: figuras como Ronald Reagan e Margaret Thatcher também estiveram por lá. Ambos, aliás, hoje são homenageados com estátuas no Hillsdale College, assim como George Washington, Winston Churchill e Frederick Douglass, o líder abolicionista do século 19, que discursou por suas vezes na faculdade.

A clara predileção pelos valores conservadores pode motivar críticas de que Hillsdale não prepara seus estudantes para enfrentar um mundo cada vez mais alinhado com as bandeiras “progressistas”. Os mestrandos e os doutorandos de política até aprendem sobre Karl Marx, mas não dão muita atenção a ele: a obra do pensador socialista é parte de um curso que inclui diversos outros autores do século 19. As grandes estrelas são autores clássicos, como Platão, Aristóteles e Cícero — além de Thomas Jefferson e Alexander Hamilton, que participaram da fundação dos Estados Unidos.

Para Ethan Greb, a falta de diversidade ideológica pode ser um problema. “Definitivamente, eu acho que Hillsdale criou uma bolha política e ideológica ao redor dos seus alunos”, afirmou. “É reconfortante e edificante ser parte de um grupo que acredita nas mesmas coisas. Mas, ao mesmo tempo, pode haver uma atrofia da capacidade de confrontar ideologias opostas.” Ethan relata outra preocupação típica de um estudante de Hillsdale: “De uma perspectiva cristã, existe menos oportunidade de compartilhar a mensagem do Evangelho”, diz. É que praticamente todos os alunos já são cristãos, embora a faculdade não faça qualquer exigência nesse sentido.

Ethan e Caroline Greb | Foto: Reprodução Instagram

Maria Servold, diretora assistente do curso de jornalismo, diz que a considerável homogeneidade ideológica dos estudantes não é um problema. “Não acho difícil ensinar os alunos a relatarem os fatos e escreverem de forma justa”, contou. “Embora muitos estudantes de Hillsdale sejam conservadores, eles também tendem a ter uma grande apreciação pela liberdade de expressão. Eu os ensino a reportarem e escreverem notícias de forma direta, tanto quanto a escreverem artigos de opinião.”

Se Hillsdale é uma exceção ao predomínio dos “progressistas” nas universidades norte-americanas, o cenário no Brasil parece ser ainda mais desfavorável

Ex-aluna de Hillsdale, Maria diz que avaliava estudar na Universidade do Missouri, cujo curso de jornalismo tem ótima reputação. Até que mudou de ideia: “Visitei Hilllsdale, assisti a uma aula de jornalismo, li o The Collegian (o jornal produzido pelos estudantes) e minha decisão estava tomada”.

A reportagem de Oeste perguntou à equipe de comunicação de Hillsdale se a faculdade se define como “conservadora”. A resposta foi esta: “Hillsdale está comprometida com a educação de excelência, dentro da tradição clássica das artes liberais”, afirmaram. “Além disso, nosso currículo básico e os princípios expressos nos documentos fundadores da faculdade contêm um apreço sério e bem fundamentado pelos ideais expressos na Declaração de Independência, na Constituição e em outros grandes textos das tradições ocidental e cristã.”

Procura em alta

Com seu sucesso financeiro e acadêmico (e a radicalização de instituições que antes eram vistas como respeitáveis), Hillsdale tem atraído cada vez mais candidatos a alunos. A média do GPA (índice que mede o desempenho dos alunos no ensino médio) dos admitidos só cresce e é praticamente igual ao da prestigiosa Universidade de Michigan, considerada uma das maiores do país.

A faculdade também tem investido pesado em cursos gratuitos oferecidos pela internet, e que incluem temas como o livro do Gênesis, a Segunda Guerra Mundial e a obra Hamlet, de William Shakespeare. Apesar de não gerar credenciais acadêmicas, esses cursos atraem um público cada vez maior. Muitos alunos, geralmente adultos acima dos 40 anos, acabam virando doadores da faculdade. Graças à boa saúde financeira, Hillsdale abriu, em 2019, um programa de mestrado profissional em política em Washington, a poucos metros do Congresso norte-americano. A faculdade lidera ainda um bem-sucedido programa de implementação de escolas com perfil clássico ao redor do país.

O cenário no Brasil

Se Hillsdale é uma exceção ao predomínio dos “progressistas” nas universidades norte-americanas, o cenário no Brasil parece ser ainda mais desfavorável aos conservadores. Embora existam instituições menores, geralmente religiosas, de perfil conservador, elas normalmente não se destacam pela qualidade acadêmica. Boa parte do mercado privado é dominada por faculdades que priorizam o fluxo de caixa à promoção das virtudes. E não só não há universidades particulares com as características da instituição de Michigan, como as universidades públicas parecem estar aprisionadas em um modelo ideal para a esquerda: recursos públicos garantidos, estabilidade no cargo para os professores e autonomia universitária, que é usada para justificar os mais diversos abusos ideológicos.

“É preciso abandonar a mentalidade de que as universidades devem transformar a sociedade”, diz Pablo Lollo, professor da Universidade Federal da Grande Dourados e presidente do grupo Docentes pela Liberdade, criado para reunir professores universitários liberais e conservadores. Para ele, a solução para o ensino superior passa por uma reaproximação entre a academia e os cidadãos. Isso, por sua vez, exige uma “maior participação dos mandatários”, na avaliação dele. O professor acredita que os governantes precisam assegurar que as universidades públicas atuem para o bem da sociedade que as financia em vez de gastarem seus recursos tentando fabricar ativistas.

Para Lollo, apesar dos muitos entraves burocráticos, o Brasil comportaria iniciativas com o perfil de Hillsdale. “Acredito que haveria espaço para uma universidade privada nesses moldes”, diz.

Mas é possível que um projeto do tipo envolva algum grau de desobediência civil.

Em 2020, quando o Estado de Michigan determinou que todas as universidades suspendessem as aulas presenciais, o campus Hillsdale fechou as portas. Mas, subitamente, os professores começaram a organizar eventos em suas próprias casas, anunciados a suas turmas como “Encontro social — que de forma alguma é uma aula — para discutir a obra de Aristóteles”. Eram aulas. Mas não no espaço físico da universidade. De certa forma, em tempos nos quais a insanidade é premiada, a verdadeira educação é um ato de resistência.

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Revista Oeste