sexta-feira, 1 de julho de 2022

'Os vendedores de sonhos', por Guilherme Fiuza

 

Discos dos Beatles, no Motala Motor Museum | Foto: Jeppe Gustavo/Shutterstock


O que unia todos era a lei não escrita de que todos podiam ser como quisessem — e haveria espaço para todas as diferenças


Como todos sabem, o sonho acabou. Mas, para acabar, teria que começar. E isso de fato aconteceu. Há 60 anos, o sonho começou. Por algum motivo, o anúncio do seu fim ficou mais famoso que o sonho em si. Muita gente nem ficou sabendo direito que sonho foi esse — que fez tanto barulho ao terminar, com a lendária frase “The dream is over” fechando os míticos anos 60 como uma porta de aço que alguém baixa bruscamente no fim do expediente, sem maiores explicações. Fim de papo.

Foi um sonho belo. E vamos logo deixando claro que sonho não é fuga ou mera abstração. Sonho é coisa séria. Mesmo que não se realize conforme o seu desenho inconsciente ou até consciente. O sonho de consumo da alma move o mundo. E foi isso que começou a se materializar em 1962, com a chegada dos Beatles às paradas de sucesso da Inglaterra.

Os Beatles, em 1963 | Foto: Wikimedia Commons

A primeira música ranqueada se chamava Love Me Do, era simples demais e não chegou ao primeiro lugar. Mas ela continha uma gaita peculiar (Lennon) e, principalmente, trazia a recusa por parte do jovem grupo de seguir receitas propostas pela gravadora (EMI). O produtor George Martin, acostumado a gravar o gênio do humor Peter Sellers e outros artistas não convencionais, entendeu o sopro de originalidade e petulância dos Beatles e deu linha.

O resultado em quase uma década foi uma das maiores experiências de liberdade artística que o mundo já testemunhou. E não só artística. Foi feito um pacto não escrito em torno dos Beatles envolvendo uma espécie de licença para matar velhos costumes. Os filmes A Hard Day’s NightHelp e Yellow Submarine explodiram bilheterias ao redor do mundo com um jeito diferente de ser irreverente. Dos roteiros aos cabelos, tudo podia ser tentado. E tudo dava certo.

Dava certo por causa do tal pacto de liberdade. Em intervalos mínimos para qualquer história de evolução musical, rocks básicos foram se transformando em orquestrações sofisticadas — que ao mesmo tempo não perdiam o frescor pop. Os Beatles eram o primeiro grande fenômeno de conexão mundial pela mídia e transformaram isso num caldeirão de influências — do caminhoneiro norte-americano Elvis Presley ao místico indiano Havi Shankar. Esse era o sonho: juntar todo mundo.

Os Beatles, na Holanda, em 1964 | Foto: Poppe de Boer/Wikimedia Commons

O sonho iniciado 60 anos atrás pelos Beatles, ou personificado pelos Beatles, era na prática a concretização do romantismo. Tudo que já se havia escrito sobre harmonização estética, filosófica e comportamental das sociedades passara a ter uma experiência viva, concreta, sentida por todos. Não uma uniformização, muito menos uma padronização. Ao contrário: o que unia todos era a lei não escrita de que todos podiam ser como quisessem — e haveria espaço para todas as diferenças. Espaço, não: respeito, valorização, afirmação. Afirmação, não: o bom da coisa era que não carecia afirmar nada, declarar nada, estipular nada. Estava escrito, ou melhor, não estava, que a lei era respeitar tudo que fosse diferente, porque era dali que viria provavelmente a sua próxima inspiração — não a sua próxima desavença.

O que acabou foi o pacto de liberdade. A tentação de industrializar a liberdade foi mais forte

Foi um belo sonho. E ele foi real. Por que acabou? Porque John Lennon pronunciou “o sonho acabou” ao final dos Beatles, vocalizando o fim do romantismo? Não, não foi por isso. O que acabou foi o pacto de liberdade. A tentação de industrializar a liberdade foi mais forte. O espírito era tão bom, tão fértil que logo proliferaram os vendedores de sonho. O espírito livre vê florescer a diferença e se guia por ela, ou a ignora; o vendedor simula a diferença para tentar vendê-la pelos olhos da cara ou para patrulhar os não aderentes.

O sonho acabou porque tentaram adestrar a espontaneidade. Estão tentando até hoje. A experiência do amor ao próximo sem catequese, ou seja, a comunhão gratuita, a propensão ao exercício da irmandade pelo respeito/amor à diferença, é algo tão sublime que obviamente iriam aparecer os intermediários providenciais. Eles abrem suas pastinhas de produtos românticos e te oferecem uma ética humanitária novinha em folha — que te habilita instantaneamente a patrulhar o freguês ao lado que não adquiriu o mesmo serviço.

O sonho iniciado há 60 anos acabou. Tentar conhecê-lo não é nostalgia. É talvez um caminho para acabar com o pesadelo que ficou no lugar dele.

Os Beatles, posando para foto do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, lançado em 1967 | Foto: Divulgação

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Revista Oeste