sábado, 30 de novembro de 2019

"Janaína, vida minha", agradece Marcelo Tognozzi

Naquela manhã de 20 de novembro, ela entrou na minha casa sem pedir licença. Pequena, enrugada, vestido negro, mantilha, poderia fácil ser confundida com uma inocente abuelita andaluza. Chegou sorrateira, esgueirando pelos cantos, manipulando sorte e destino como numa emboscada, impondo fracasso a qualquer coisa predestinada a dar certo. Depois de uma peregrinação por clínicas e consultórios, médicos que ouvem sem escutar e opinam sem examinar, Janaína deu com a senhorinha de olhar solerte, mãozinhas muito brancas, sentada na nossa mesa daquela cafeteria. Um temporal lavava Brasília. A vida depois da seca.

A morte é sempre alguma coisa que foi; ela vem buscar o que não mais existe. Mas eu estava ali, existindo. Janaína olhou séria: “Ninguém vai levar meu homem”. Me puxou: “Vamos agora para o hospital”. Eram 6 e meia da tarde. O duelo começara. A morte sorriu seus dentes amarelos. Janaína travou o maxilar mordendo a raiva. E acelerou o carro. Hospital repleto. Há 36 horas eu lutava contra uma infecção crescente, a mão direita sem movimentos, o braço inchando. Morfina na veia. Efeito zero. A dor seguiu em frente. A morte gargalhou alto. Janaína não deu bola. Arrumou outro hospital. Repetiu: “Não vou entregar meu homem!
Outra enfermaria, mais morfina, mais dor. Já passava da meia-noite quando a enfermeira plugou no meu braço a 1ª dose de antibiótico. A mão igual a 1 pão Petrópolis na cor e no tamanho num braço de Popeye. 15 horas e muito sofrimento depois, desembarquei no centro cirúrgico a bordo de uma cadeira de rodas. Por cima da máscara, os olhinhos do cirurgião me contavam em detalhes todos os riscos –absolutamente todos. Uma coleção de tragédias e sofrimentos; 1 catálogo de horrores. Anestesia, sedação, tudo soava como despedida.
A morte estava ali de sentinela. Firme e paciente como urubu diante do novilho picado de cascavel, agonizante, estirado no pasto, prestes a virar banquete. Mas Janaína continuava no jogo, o duelo seguia firme. Jogar a toalha? Nem pensar. “Não dou nem entrego meu homem. Nosso amor é maior que qualquer sofrimento”, repetiu mil vezes. A morte olhava para Janaína e ria: inútil como 1 besouro de pernas para o ar, aflito e vulnerável. Foi seu 1º erro. Subestimou a mulher movida a coragem, determinação e espiritualidade. Dona de uma imensa capacidade de enxergar o mundo através do coração das pessoas.
Muito tempo depois abri os olhos. Sentia muito frio, mas não sentia o braço nem a mão. Inertes, não respondiam aos meus comandos. Na parede do centro cirúrgico, 2 relógios: 1 deles parado. A vida e a morte. Os que ficam e os que seguem. Janaína na cabeça e no coração. Uma intensa sensação de pertencimento percorreu meu corpo, sentidos, minha alma. Fiquei naquele estado de transparências latejantes do poema de Fernando Pessoa até o padioleiro iniciar a viagem de volta ao meu quarto.
Ela me esperava. Emocionada. Forte. Altiva. Cheia de vida e lágrimas. Me abraçou e beijou como se minha dona fosse desde sempre. Vencera o duelo. A morte saiu daquele quarto completamente derrotada, cabisbaixa, praguejando, a soberba esfolada. Repleta de energia, beleza, iluminada de dignidade e inteligência, Janaína deu à senhorinha de negro o pior dos castigos: a ineficiência. Morte ineficiente não serve pra matar, nem pra morrer. Junto com o duelo, Janaína ganhou minha gratidão, lealdade, meu amor, minha vida.

Poder360