Em uma galáxia muito, muito distante o controle remoto do robozinho R2-D2 travava, as naves em miniatura eram feitas com restos de brinquedos e tempestades de areia na Tunísia pareciam querer soterrar os planos de tirar do papel Uma Nova Esperança, o ponto de partida do então desacreditado e hoje fenômeno cultural Star Wars — Guerra nas Estrelas. Ao fim da primeira trilogia (1977-1983), George Lucas, o inventor do universo que inauguraria o conceito de blockbuster, comparou: “O primeiro filme foi como se formar no ensino médio; o segundo, na universidade; e este último é o meu mestrado”. Quatro décadas de duelos interestelares e vários recordes de bilheteria depois, uma plateia cujos integrantes mais estridentes são impermeáveis às críticas (e chegam até a declarar no Censo praticar a religião “Jedi”) aguarda ansiosa a estreia de A Ascensão Skywalker, o nono episódio do épico espacial imaginado por Lucas. “Star Wars impõe um cuidado diferente de qualquer outro filme por envolver forte componente emocional”, disse a VEJA o diretor de arte brasileiro Kris Costa, 48 anos, criador de orbak, um parente de cavalo que aparece na nova película. “Um minúsculo detalhe percebido como afronta à história pode machucar os fãs.”
O lançamento mundial do epílogo da saga Skywalker (mas, calma aí, não de Star Wars), em 19 de dezembro, é a ponta de um processo que fez girar toda a poderosa máquina da Disney, que desde 2012 é dona da Lucasfilm. As engrenagens envolvem, até agora, a produção de cinco títulos para o cinema, a venda de 3 bilhões de itens da galáxia de Luke, princesa Leia e companhia — roupa, xampu, games —, dois parques temáticos e a série de TV Mandalorian, que foi ao ar no dia de estreia do streaming Disney+ e fez viralizar nas redes um gracioso Yoda bebê de apenas 50 anos (o dos filmes morre com 903). O objetivo de todo esse investimento é rejuvenescer, expandir e eternizar o que já é uma das mais lucrativas franquias do planeta Terra. Na sede da Lucasfilm, em São Francisco, um relógio fazia a contagem regressiva para o primeiro episódio de Mandalorian, em 12 de novembro. “Quanto mais de Star Wars chegar às pessoas por diferentes caminhos, mais elas vão se conectar à história e querer ir ao cinema”, diz Matt Martin, membro da equipe que está lá para zelar pela “essência do universo”. O guardião, como Martin é conhecido, esclarece: “O filme é do diretor J.J. Abrams. Quando ele nos procura, nós o ajudamos a pensar em formas interessantes e coerentes de dar asas ao enredo”.
Parcialmente abertas entre maio e agosto, as áreas temáticas nas duas Disneys, a de Orlando e a da Califórnia, estão entre as apostas mais ousadas da empresa na marca Star Wars. VEJA visitou o parque da Flórida e teve acesso a um naco que será inaugurado na próxima quinta-feira, 5, o ponto-final de um projeto que tomou cinco anos e foi impulsionado por 2 bilhões de dólares. Técnicos faziam os últimos ajustes. “Bob Iger (CEO da Disney) me disse que precisamos oferecer tudo o que podemos, trabalhar no limite da tecnologia, sempre ambiciosos”, conta o designer Scott Mallwitz, diretor executivo de criação em Orlando do desértico planeta Batuu, situado em uma zona batizada de Galaxy’s Edge (o extremo da galáxia).
Reza a lenda, relatada por Mallwitz com a convicção de quem explica o funcionamento de uma cidade qualquer na Terra, que o planeta caiu no limbo depois que as viagens espaciais ganharam velocidade e as naves não precisavam mais pousar ali para abastecer. Assim, Batuu passou a ser o porto perfeito para quem não quer holofotes: ladrões, caçadores de recompensa, contrabandistas. Procurado pela temida Primeira Ordem, a dos malvados, um grupo de apoiadores da Resistência, os bonzinhos liderados pela incansável princesa Leia, montou um acampamento nas paragens da Disney World. A trama se passa em algum momento entre o oitavo e o nono episódio, este que está para estrear. “Escolhemos um planeta não existente na saga justamente para poder criar com mais liberdade”, explica Mallwitz. “Quem sabe um dia inspire um filme.”
A área fica localizada no parque Hollywood Studios, mas que isso seja esquecido por ora. O relevo de Batuu é alto o suficiente para o visitante não enxergar nenhuma montanha-russa fora do roteiro. No meio de tudo, impera nada menos que uma réplica da lendária Millennium Falcon em tamanho real. A atração funciona como um videogame ultrainterativo no qual a realidade virtual conduz seis passageiros, cada qual com uma função (piloto, atirador, engenheiro), em uma belicosa jornada pelo espaço inóspito. Objetivo: completá-la preservando o máximo da nave-ícone-performance, aliás, devidamente medida (a reportagem encerrou a viagem com 62% de avaria na estrutura da Millennium e desembarcou um tantinho mareada). Para deleite dos aficionados, a bordo há um xadrez galáctico, o dejarik, à venda em versão para levar para casa na loja ao lado.
Evidentemente, estando onde está, Batuu é um planeta afeito ao consumo. Quer um droide para chamar de seu? Pague 100 dólares e escolha à vontade cores e modelos montados na hora, com direito a chip de personalidade e tudo. Curiosidade: graças a um sistema de radiofrequência nos domínios do parque, os robôs que professam o bem “se assustam” ao cruzar com os que estão a serviço do mal. Sabres de luz? O céu é o limite: por 200 dólares, o turista opta entre 120 000 combinações de peças para poder erguer um item singular. “Um dos que têm mais saída é o sabre do Luke, o herói, mas vendemos muitos objetos e roupas do lado escuro da força, tipo a capa de Darth Vader. As pessoas acham os itens estilosos”, afirma David Padilla, coordenador de merchandising no profícuo Batuu. Ainda em fase de acabamento, VEJA esteve na atração Rise of the Resistance, que dragou as energias do arquiteto John Larena, o diretor criativo. “A obsessão era tornar a coisa o mais realista possível, com o desafio de andarmos em um terreno nunca antes desbravado em um parque”, diz Larena.
Detalhes sobre tecnologia ficam guardados sob uma exagerada aura de segredo de Estado. “Revelar a receita quebraria a mágica”, argumenta Larena. Nesse (ops) brinquedo, o visitante experimenta sensações como a de despencar no espaço e chacoalhar em um veículo sem trilhos que desliza e rodopia em todas as direções. Depois de Rey (a protagonista da última trilogia, vivida pela excelente Daisy Ridley), em versão holográfica, cooptar voluntários para lutar pela Resistência, o visitante é capturado por uma nave do mal que carrega a bordo Kylo Ren (pausa: agora é ele que personifica a face escura da força, antes representada por seu avô Darth Vader). A história segue dentro de um hangar de escala colossal, guardado por cinquenta Stormtroopers (os soldados de armadura branca). Interrogatórios e outros percalços compõem a aventura, que, como não poderia deixar de ser, acaba em final feliz. A brincadeira continua no menu de Batuu — até a Coca-Cola tem visual, digamos, galáctico. Corajosos podem provar o leite azul, que a tia de Luke preparava lá atrás, ou o verde, que o herói em fase madura retira de uma criatura medonha em Os Últimos Jedi. De base vegana — o primeiro mais doce, o outro mais cítrico —, eles dividem opiniões.
Com os parques — e filhotes que derivem deles, como um hotel-nave previsto para o resort de Orlando — a Disney busca rejuvenescer a plateia de Star Wars. Quando George Lucas bolou seu universo, na longínqua década de 70, pretendia alcançar uma turma adolescente órfã de entretenimento de qualidade, e conseguiu. É verdade que, no princípio de tudo, ninguém pôs fé no esboço de roteiro que ele intitulou Diário dos Whills, protagonizado por um certo Starkiller (semente do que viria a se tornar o célebre Luke Skywalker). A ideia foi rejeitada por grandes estúdios, até ser acolhida por uma ainda cética Fox. O resto é história: com recordes de bilheteria, a saga que promove um grande caldo de mitologias, em que sobressaem valores como heroísmo e temas como o bem contra o mal, sedimentou o fenômeno do filme-evento. E toda uma jovem geração passou a falar o dialeto da força e dos sabres de luz, um mundo tão vasto em referências que foi condensado em enciclopédias.
A faixa etária da plateia, porém, avançou. “Atualmente, o maior público de Star Wars está na faixa de 25 a 35 anos. Sabemos que a franquia pode se expandir entre gente mais nova”, avalia Roberta Fraissat, diretora de marketing no Brasil para o braço de cinema. Na base da Lucasfilm em São Francisco — santuário de relíquias como o ensanguentado capacete de Finn, desertor da obscura Primeira Ordem, e livros de samurai que inspiraram Lucas — o “guardião” Matt Martin lembra: “Star Wars atua em uma indústria de entretenimento muito mais complexa e competitiva que a do passado”. Ainda assim, a marca quarentona revela vigor como poucas. Segundo analistas, os 4 bilhões de dólares desembolsados sete anos atrás pela Disney para a compra da empresa de Lucas já retornaram ao caixa. Estima-se que só os quatro filmes rodados na nova era tenham rendido 4,8 bilhões de dólares (embora esse não seja um cálculo tão simples, já que precisam ser computados custos de produção, tem-se aí uma boa base). “Foi uma das mais espertas aquisições da história”, definiu o analista Paul Dergarabedian à agência especializada ComScore.
O ponto-final na saga Skywalker é apenas uma etapa de um plano que prevê vida longa para Star Wars, com novas séries e filmes — um deles estaria nas mãos do produtor Kevin Feige, o presidente da Marvel, também da Disney. Pipocou aqui e ali a notícia, não confirmada, de que Obi-Wan Kenobi, o mestre de Anakin e Luke, poderia ganhar uma trilogia própria. Isso causou forte agitação no mundinho dos fãs-clubes, que não raro se reúnem a caráter — com sabres, capas — para debater assuntos como Star Wars e a história da política, só para dar um brevíssimo aperitivo de como essa parcela da humanidade caminha. O maior desses grupos no Brasil é o Conselho Jedi, com seus 100 000 seguidores em vinte estados. “Temos como objetivo cultuar e perpetuar a cultura Star Wars”, recita o bancário Brian Moura, presidente do clube no Rio de Janeiro.
A Disney já manifestou disposição para lançar um filme Star Wars a cada dois anos — intervalo que Iger avaliou ser apropriado após o desempenho de Han Solo, que chegou aos cinemas cinco meses depois do episódio VIII e registrou bilheteria aquém do esperado. “Talvez tenhamos exagerado na quantidade e na velocidade”, ponderou. Sobre a trama de A Ascensão Skywalker, quase nada se sabe. É notório que a história dirigida por J.J.Abrams não tem nada a ver com a que Lucas esboçou antes de passar o negócio adiante e que um novo droide cuja cabeça parece um secador de cabelo, D-O, fará companhia a BB-8. “Posso afirmar que o filme não vai começar imediatamente após o último”, soltou Abrams, em uma declaração que soou como grande revelação nesse universo de informações obsessivamente controladas. O mistério é, afinal, um dos ingredientes da força.
O MAIOR DE TODOS OS FÃS
Às vésperas do lançamento de Star Wars, em 1977, ninguém estava preparado para o frenesi que o filme causaria. Aí ele estourou, e todo mundo queria um suvenir que fizesse lembrar dele. O imprevisível levou a uma situação insólita: como os bonequinhos dos personagens ainda estavam em fabricação, as pessoas compravam a caixa vazia, garantia do brinquedo que só viria uns meses depois. “Star Wars inventou o merchandising em larga escala na indústria cinematográfica”, diz o ex-jornalista e ex-funcionário da Lucasfilm Steve Sansweet, 74 anos, que guarda o maior acervo mundial de itens ligados à franquia, segundo o Guinness Book. Em Petaluma, a uma hora de carro de São Francisco, o museu Obi-Wan (seu jedi favorito) é local de adoração para fãs, que se perdem em meio aos 40 000 itens em exposição — apenas 10% do que Sansweet amealhou nos últimos quarenta anos.
A visita passa por preciosidades garimpadas em leilões, como uma série de oito capacetes de Darth Vader customizados por artistas americanos, parte da vestimenta que o vilão usou no episódio IV e um Yoda extraído do molde original (“São só oito no planeta”, valoriza o dono). Na monotemática biblioteca, dezessete livros sobre a saga são de sua autoria, dois deles enciclopédias. No escritório, Sansweet pendurou o pôster em que o ex-chefe George Lucas lhe deixou uma dedicatória: “O maior de todos os fãs”. As visitas, que precisam ser agendadas, são brindadas com vinho produzido na fazenda do próprio Lucas. Rótulo? Skywalker.
Monica Weinberg, de Orlando e São Francisco, Veja