sábado, 30 de novembro de 2019

‘É preciso ensinar às pessoas o que é uma informação confiável’, diz fundador da Wikipédia

Esperança. Para Wales, acesso livre ao saber pode ajudar a resolver pobreza


Ele já criou o quinto site mais visitado do mundo, disponível em 288 línguas e utilizado por mais de 600 milhões de pessoas – a Wikipédia, enciclopédia online que há 18 anos é construída por uma rede de voluntários espalhados pelo planeta. Agora, o americano Jimmy Wales, 53 anos, quer reconstruir a experiência de uma rede social. No início deste mês, ele colocou no ar o WT:Social, uma plataforma em que as pessoas podem interagir sem ter de visualizar anúncios. 
Mais: a rede promete não vender os dados dos usuários e dar a eles o poder de editar títulos de reportagens que enganem seus contatos, reportando problemas. Por enquanto, há 350 mil usuários cadastrados e outros 200 mil na fila de espera, segundo Wales. É possível pular a fila convidando amigos para a rede ou pagando uma assinatura, como num serviço de streaming – R$ 25 por mês ou R$ 250 por ano. Um grupo de conversas em português já tem mais de 7 mil pessoas. 
“Precisamos que uma a cada 200 pessoas contribua para garantir a sustentabilidade. Acredito que as pessoas estão prontas para uma alternativa às redes sociais focada em qualidade, não em cliques”, diz o americano ao Estado – ele esteve no Brasil na última semana para participar do CASE, evento organizado pela Associação Brasileira de Startups (ABStartups). Durante a entrevista, também falou sobre política, democraciadesinformação notícias falsas. “As pessoas não querem compartilhar coisas falsas, elas compartilham algo sobre seus sentimentos, medos e opiniões”, diz. 

Por que precisamos de uma nova rede social? 

As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas com as redes sociais que já existem e o dano que essas redes estão causando à sociedade, ao diálogo e ao jornalismo. Acredito que as pessoas estão prontas para uma alternativa, focada em qualidade, não em caça de cliques. 

A vasta maioria das redes sociais funciona com base em anúncios. Como o WT Social será sustentável sem anúncios? 

A Wikipédia se baseia nessa ideia: se aquele trabalho importa para um grupo de pessoas, elas podem contribuir financeiramente. Não é uma multidão, mas tem sido suficiente para a Wikipédia nos últimos anos. Pode ser parecido com as redes sociais: o custo de armazenamento em servidores nunca esteve tão barato. Além disso, as empresas de redes sociais gastam muitos em vendas e otimização de publicidade. Podemos economizar nessas áreas. O WT:Social é um teste. Será uma surpresa se a rede for muito popular e ninguém aceitar pagar por ela – porque não foi isso o que aconteceu com a Wikipédia. E não precisamos ser o número 1: se servirmos bem a 20 milhões de usuários, já seremos um sucesso, porque atenderemos a uma comunidade. 
'As pessoas estão cada vez mais insatisfeitas com as redes sociais e o dano que elas causam à sociedade, ao diálogo e ao jornalismo', diz Wales

Parece algo parecido com o que Mark Zuckerberg disse sobre o novo propósito do Facebook, que é conectar comunidades. O que o sr. acha disso? 

É interessante. A despeito das minhas críticas, não odeio Mark Zuckerberg. Acredito nele quando ele fala, de um jeito bem idealista, que quer conectar as pessoas do mundo. O problema é que há efeitos colaterais que ele não antecipou. O Facebook tem problemas complicados, difíceis de resolver dado seu modelo de negócios. 

Como pretende evitar que sua rede seja inundada por notícias falsas? 

Ainda somos uma rede jovem. Estamos no ar há quatro semanas. Mas pense o seguinte: só teremos dinheiro se entregarmos um produto de qualidade, então temos de defendê-lo com unhas e dentes. É diferente de uma rede baseada na quantidade de cliques, que pode ter conteúdos problemáticos, mas clicáveis. Esse é o pilar fundamental. Também acredito que podemos ter um controle genuíno da comunidade. Na Wikipédia, se você entrar numa página e escrever algo racista, isso será deletado imediatamente, porque a comunidade está de olho. Nas redes sociais, porém, esse modelo é diferente: se alguém escreve algo racista, um funcionário terceirizado em algum canto do mundo terá de olhar para isso – e já existem muitos relatos de que esse é um emprego horrível, que causa traumas às pessoas. 

Antigamente, as pessoas diziam para não se confiar sobre em tudo que se lê na internet. Hoje, o problema da desinformação parece ser justamente esse. Como o sr. vê o assunto? 

É um conhecimento importante: até mesmo na Wikipédia há informações em que não se pode confiar – se um artigo carece de fontes, é bom desconfiar. Precisamos educar as pessoas sobre o que é uma informação confiável, uma notícia confiável. Teorias da conspiração surgem porque as pessoas não aprenderam a julgar o que é plausível ou não. É algo que precisa ser ensinado na escola, para crianças e adolescentes, para não se tornarem vulneráveis ao que não faz sentido. 

Não incomoda o sr. o fato de que há erros na Wikipédia? 

Eu consigo ficar bem com isso porque sei o quanto a comunidade se esforça para resolvê-los. Estaria mais preocupado se descobrisse que perdemos o controle para bots russos ou desinformação. A comunidade se autocontrola: temos tradições e costumes, padrões de checagem e de escrita. Eram coisas que achei que eram importantes e agora fazem sentido. Por exemplo: não temos no software da Wikipédia nenhum sistema de votação. Há um sistema de referendo, mas toda opinião precisa ser justificada. Imagine que há uma discussão, por exemplo, para deletar o artigo sobre Donald Trump. Dizer que ele é um idiota não é uma boa razão para deletar um artigo. Falta de informações ou viés são. Se um sistema é resolvido apenas por algoritmos, é preciso ser cuidadoso porque eles sempre podem ser alvos de manipulação, como robôs automatizados. É preciso debater. 

O sr. foi conselheiro do The Guardian. Como vê o momento do jornalismo? 

É um momento complexo: corre a ideia de que a verdade não é mais algo que une a sociedade, de que é preciso entender os fatos para depois debater sobre o que deve ser feito. Mas o que sempre digo é que os seres humanos são os mesmos há 5 mil anos. Somos macacos espertos: somos incríveis, temos falhas, somos complicados. Entendo que exista pressão nas empresas jornalísticas: fazer bom jornalismo dá mais trabalho do que criar listas. Além disso, há o problema de que um anúncio programático em uma boa matéria ou em um site de notícias falsas vale a mesma coisa. É uma competição complicada. Mas há bons sinais: têm crescido o número de assinaturas e contribuições financeiras de leitores aos jornais. Na Inglaterra, o Guardian conseguiu ter lucro pela primeira vez em anos – e tenho parte de culpa nisso, porque sugeri a eles que pedissem dinheiro para os leitores. Tem funcionado, mas é só o começo. Me preocupo com o jornalismo local, jornais regionais têm fechado no mundo todo. É uma boa época para ser cunhado do prefeito de uma cidade pequena e ter uma empreiteira, porque não há jornais locais para fiscalizar. Todas as sociedades enfrentam a corrupção e precisamos de jornalistas para combatê-la. 

No Brasil, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) pode passar a responsabilizar sites e plataformas de internet sobre conteúdos de terceiros, o que poderia fazer a Wikipédia, o Facebook ou o Google serem processados. Por outro lado, há a defesa de que isso ajudaria a evitar notícias falsas. Como o sr. vê o assunto? 

É um tema complicado. Pense no Facebook: ele é desenhado em torno de interações sociais, não da qualidade. Se eu quiser compartilhar uma notícia falsa com meus amigos, o Facebook não deveria ter o poder de me parar. Imagine se Zuckerberg dissesse, há cinco anos, que ele ia decidir o que pode ou não ser publicado na plataforma. As pessoas ficaram malucas! Acredito que queremos preservar uma internet aberta, com a possibilidade de compartilhar o que queremos nas plataformas. Até porque acredito que as pessoas não querem compartilhar coisas falsas. Elas compartilham seus sentimentos, medos e opiniões. É difícil dizer que o Facebook têm culpa sobre os comentários dentro da plataforma, mas eles têm responsabilidade. Há uma boa metáfora sobre isso: se você entra num bar e alguém te dá um soco, o bar não pode ser processado por isso. Não há culpa genuína. Mas há responsabilidade: se alguém está bêbado e se comportando mal, seria bom parar de servir álcool para aquela pessoa. Com a internet, funciona da mesma forma. 
Piada na Wikipédia trocou foto do Secretário de Defesa dos EUA pela de goleiro da seleção americana após partida 'sem gols'

A Wikipédia é mantida por uma rede de voluntários, pessoas com tempo livre – o que pode torná-la desigual. Como conseguir fazer uma enciclopédia que respeita a diversidade? 

É algo que nos preocupa bastante. Um exemplo é de que 80% da comunidade de voluntários é homem. E muita gente faz da Wikipédia um hobby. Em países pobres ou em desenvolvimento, entendo que a prioridade é trabalhar para comprar comida para sua família, não debater com estranhos pela internet. Não temos como resolver todos os problemas do mundo, mas podemos ajudar com progresso. Acredito que o acesso a conhecimento livre é uma das soluções para a pobreza – pense no impacto que podemos causar a uma criança com um smartphone. Hoje, não é fácil contribuir para a Wikipédia a partir de um celular, mas o público do site aumentou – e por isso, o reconhecimento de quem contribui também, porque o impacto é maior. Há pessoas que gastam horas jogando videogames. Gostaria que elas gastassem parte disso ajudando a criar e editar artigos na Wikipédia, porque o impacto seria enorme. 

O que acha de gente que usa a Wikipédia para fazer piada, mudando, por exemplo, a página de um time de futebol? 

Páginas de pessoas famosas, como Donald Trump ou qualquer presidente, são protegidas. Apenas membros da comunidade que já têm histórico de contribuições podem editá-las. Agora, quanto a piadas… oficialmente, digo que as pessoas não deveriam fazer isso, mas há intervenções engraçadas. Certa vez, em uma Copa do Mundo, o goleiro dos EUA fez uma partida sensacional. Aí alguém alterou o artigo do Secretário da Defesa americano, trocando a foto pelo do goleiro. Ficou apenas por um minuto no ar, mas foi engraçado. Mas a maior parte dos trolls da internet não têm graça. 
Bruno Capelas - O Estado de S. Paulo