segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Para se salvar da prisão, Lula precisa que o Supremo repita a vigarice que manteve os direitos políticos de Dilma 'trambique'

Diego Escosteguy, Epoca


Quando o acaso conduziu-o à relatoria da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2014, Teori Zavascki era um magistrado de convicções inquebrantáveis. A experiência de duas décadas como juiz, primeiro no Tribunal Regional Federal da 4ª Região e depois no Superior Tribunal de Justiça, ensinara-lhe o valor de interpretações austeras e prudentes das leis. A Justiça, especialmente no topo, deveria ser previsível, confiável, estável. A Teori, essas características sempre pareceram virtudes – até que o marchar da Lava Jato revelou ao ministro que virtudes também podem ser vícios, especialmente no topo do sistema penal brasileiro. A Justiça era previsível: os casos de corrupção sempre prescreviam. A Justiça era confiável: nenhum poderoso era condenado. E a Justiça era estável: os casos de corrupção contra poderosos seguiriam dando em nada.
Teori ampliou suas convicções – e resolveu agir. A Lava Jato em Curitiba produzia avanços formidáveis quanto à descoberta de esquemas e à produção qualificada de provas. Mas de nada adiantaria o trabalho da Polícia Federal e do Ministério Público se, ao final desse esforço, as sentenças dos juízes nas primeiras instâncias fossem tão somente carimbos para subsequentes – e incontáveis – recursos às Cortes superiores. Se nenhum caso poderia se resolver até que todos os recursos fossem julgados, e se o número de recursos disponível a uma boa defesa era potencialmente ilimitado, nunca haveria condenação –  como não havia. Nunca haveria punição – como não havia. A proverbial impunidade dos criminosos de colarinho-branco do país, aqueles com dinheiro para pagar os advogados necessários a tantos recursos, não era um lapso de Justiça. Era o próprio sistema: o sistema que rodava impunidade.
Em fevereiro de 2016, Teori levou ao plenário do STF um voto denso e memorável, que colocaria uma trava na engrenagem desse sistema. Foi essa trava que permitiu a condenação verdadeira, substantiva, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá – tanto pelo juiz Sergio Moro, na primeira instância, quanto pelos desembargadores em Porto Alegre, na segunda. Agora, somente a remoção dessa trava, pelos próprios ministros do Supremo, poderá salvar Lula da prisão e, quem sabe, tornar possível a candidatura presidencial dele. Seja no Superior Tribunal de Justiça, seja no STF, o petista tem chances escassas, quase nulas, de reverter, por meio de recursos tradicionais, a condenação e a consequente prisão. Os relatores de seu caso em ambos os tribunais são rigorosos e severos. A Lula, cabe apenas esperar que a trava quebre. O sistema voltaria a rodar, produzindo impunidade – e descartando o maior legado de Teori, morto há um ano num acidente aéreo. Diante do quadro político e social do Brasil, seria provavelmente a decisão mais controversa da história do tribunal, com repercussões colossais. O Supremo, uma Corte que não sentenciou um só réu em quatro anos de Lava Jato e que tomou recentemente decisões favoráveis a políticos investigados, salvaria Lula. Mas não só. Salvaria Lula ao lado de dezenas de políticos investigados, desferindo o maior golpe dado na Lava Jato até hoje. É, pois, uma trava e tanto.
Essa trava, sobre a qual muito se fala mas pouco se compreende, é a nova interpretação estabelecida pelo Supremo sobre a execução de penas criminais. Sendo claro: em que momento um condenado já pode ir para o xilindró. Até o voto vencedor de Teori, alguém
poderia ser condenado na primeira ins-tância, ser condenado na segunda instância, ser condenado na terceira instância, ser condenado na quarta instância – e ainda assim nunca ser punido, graças às dezenas de recursos no meio do caminho, que retardam o processo até a decrepitude jurídica. Bastaria ter dinheiro. Pela trava Teori, cortava-se pelo meio o trajeto entre condenação e punição. Após a condenação em segunda instância, como veio a se dar no caso de Lula, estava autorizada a chamada execução provisória da pena. Se os juízes julgassem necessário, o condenado poderia começar a cumprir seu tempo de cadeia. Mesmo preso, ele ainda poderia recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (a terceira instância) e ao STF (a quarta e última instância). Em Brasília, não se poderiam julgar fatos e provas dos casos recorridos, mas somente possíveis erros na condução dos processos em instâncias inferiores. Casos célebres pela infame longevidade, como o do jornalista Pimenta Neves e o do deputado Paulo Maluf, tornariam-se uma lembrança constrangedora de um Brasil que ficava no passado.
Até 2009, o Supremo adotava um entendimento parecido com o oferecido por Teori. Naquele ano, a Corte mudou a orientação, seguindo a corrente que viria a perder no debate de 2016: punição somente após todos os recursos. Esse vai e vem expõe a dificuldade que Teori sabia que teria para emplacar sua trava. O resultado inicial foi 7 a 4. Ao revisitar o tema, meses depois, a Corte se dividiu ainda mais: 6 a 5. A votação final, no plenário, refletiu a controvérsia da tese. Para os que se opõem a ela, a Constituição não poderia ser mais clara: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Põe-se no lixo a presunção de inocência, um dos princípios mais fundamentais da civilização ocidental, segundo o qual ninguém é culpado até que se prove contrário, mediante um processo justo, com direito à defesa largamente respeitado. O “trânsito em julgado”, o fim do processo, acontece apenas quando todos os recursos, inclusive ao Supremo, esgotam-se. Começar a punição antes disso é uma agressão a um direito constitucional do acusado.
A mudança de interpretação salvaria Lula ao lado de dezenas de políticos investigados, no maior golpe à Lava jato
Parece simples. Não é. Na visão de Teori e dos ministros vencedores, a presunção de inocência não é um valor absoluto. Ele apresenta gradações: diminui conforme os processos avançam em desfavor do condenado. Na maioria dos países e nas convenções internacionais, a presunção de inocência existe enquanto ainda se debatem provas e não há condenação. Após a sentença, há possibilidade de recurso a, ao menos, um tribunal superior. Mas a presunção de inocência não existe mais. A culpa está estabelecida; a prisão pode ser decretada. É assim, com pequenas variações, em países como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Alemanha, França, Espanha, Portugal, Argentina… O Brasil, até a trava Teori, era um caso único: somente aqui se esperava uma decisão, ou decisões, da Suprema Corte sobre recursos para começar o cumprimento da pena de alguém. Somente aqui se associava essa espera à presunção da inocência, por mais que os recursos aos tribunais superiores raramente possam envolver discussão de fatos ou de culpa – envolvem, quase sempre, apenas questões de direito, de correção do processo. Enquanto há presunção da inocência, não pode haver punição. Essa era a pegadinha brasileira.
A presunção de inocência, ademais, como qualquer princípio constitucional, precisa ser analisada em conjunto com outros princípios, como o da efetividade – ou seja, a garantia de que se faz justiça num processo, de que o trabalho do Judiciário nas duas primeiras instâncias serve para alguma coisa. Invoca-se, também, a duração razoável do processo, um direito tanto do acusado quanto da sociedade. E razões de ordem prática. Nas palavras do italiano Cesare Beccaria: “A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará sempre uma impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade”.
Teori Zavascki (Foto:  Nelson Jr./Sco/Stf)











Desde o ano passado, ressurgiu a esperança de impunidade. Há uma forte movimentação no Supremo para rever, mais uma vez, a posição do tribunal sobre o assunto. Os políticos, assustados com os avanços da Lava Jato e a centralidade da trava Teori nela, pressionam a Corte. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, que sempre foram contra a trava, ganharam o apoio de Gilmar Mendes, que votara com Teori e já deu a entender que mudou de ideia. Todos suspeitam que Alexandre de Moraes, que antes de ir para o Supremo era favorável à tese de Teori, esteja com eles. A maior dúvida fica quanto à ministra Rosa Weber. Ela votou contra Teori, mas já deu sinais de que pode mudar o voto, caso a discussão transcorra mais uma vez. Em suma: a Corte está dividida, se fosse votar hoje. Não há como apontar com segurança uma tendência.
A presunção da inocência precisa ser analisada em conjunto com a efetividade da justiça
O ministro Marco Aurélio já pautou um recurso para que o assunto volte ao plenário. Cabe à presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, a decisão de colocar em pauta o debate. Ela havia se comprometido a não pautá-lo tão cedo, para evitar a calamidade que muitos temem. Agora, com a iminente prisão de Lula, a pressão aumentou. Ainda não se sabe se ela levará o assunto ao plenário nos próximos meses, apesar de relatos nesse sentido. Caso isso aconteça, e os ministros derrubem a trava Teori precisamente no momento em que Lula possa se tornar o principal beneficiado pela decisão, outra medida de forte apelo popular pode ser manietada.
Não por acaso, o maior beneficiário também seria Lula. Trata-se da Lei da Ficha Limpa, que impede a candidatura de políticos condenados por um colegiado. A lei é de 2010. Foi questionada no Supremo. Em 2012, o tribunal a considerou constitucional. Começava ali a formação do entendimento de que a presunção de inocência não poderia se sobrepor, de modo absoluto, a outros princípios constitucionais. No caso, entre outros, à moralidade administrativa. Na hipótese de uma nova discussão sobre a trava Teori, se os argumentos em favor do peso absoluto da presunção de inocência prevalecerem, a mesma linha de raciocínio poderá ser aplicada à Lei da Ficha Limpa, amputando-a de seu propósito. É por esse milagre jurídico que Lula torce – por uma Justiça que volte a ser previsível, confiável, estável. Aquela que Teori tentou mudar.