Se a reação da Câmara tivesse ocorrido no episódio envolvendo Daniel Silveira, o Parlamento não estaria ajoelhado para o Judiciário
Hugo Motta, presidente da Câmara e Deputado Federal pela Paraíba - Foto: Montagem Revista Oeste/Carlos Moura/SCO/STF/Marina Ramos/Câmara dos DeputadosNas próximas semanas, o Congresso Nacional terá a chance — e nunca se sabe se será a última — de permanecer como o local em Brasília destinado a elaborar as leis do país e fiscalizar os demais Poderes da República, com a liberdade assegurada aos deputados e senadores, segundo está escrito na Constituição de 1988. A outra opção será fechar as portas de vez: passa-se o ponto.
O que está em jogo? A Câmara aprovou, com os votos de 315 dos 513 integrantes, um projeto que garante ao deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) sua imunidade parlamentar no inquérito sobre o tumulto ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023. No STF, a balbúrdia virou acusação de golpe de Estado, com penas que chegam a 17 anos de prisão.
A Primeira Turma da Corte, composta de cinco ministros alinhados a Alexandre de Moraes — com nuances de exceção de Luiz Fux —, quer enquadrar o deputado no que chamam de “núcleo 1 da trama golpista”. Trata-se do principal pilar da acusação do Ministério Público, apresentada com base no relatório cinematográfico da Polícia Federal. Traduzindo: como Ramagem foi chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no governo Jair Bolsonaro, ele teria ajudado a preparar um golpe de Estado que não aconteceu.
Mais de 30 pessoas são acusadas de cinco crimes nesse “núcleo 1”. São eles: associação criminosa armada, golpe de Estado, abolição do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Ao ser notificado da decisão da Câmara, o Supremo reagiu. A Primeira Turma de Alexandre de Moraes afirmou, em uma sessão virtual às pressas, que Ramagem só poderia se livrar das duas últimas acusações citadas acima — os crimes de vandalismo —, porque ocorreram depois da sua diplomação, em dezembro de 2022.
O restante seria o roteiro da Polícia Federal, que o STF tenta manter em pé numa batalha contínua contra a falta de provas. A partir daí, a Mesa Diretora da Câmara recorreu novamente e disse que Ramagem não deve responder por nenhum dos crimes mencionados. O instrumento jurídico se chama Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). O STF ainda não respondeu, nem há prazo obrigatório para análise, mas já escolheu o relator: Alexandre de Moraes — nada mais previsível.
Trocando em miúdos, a assessoria jurídica da Casa diz que o Supremo: O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que passa longe de qualquer desgaste com o Supremo desde que jantou na casa de Alexandre de Moraes, foi obrigado a se manifestar. Ele viajou para um evento nos Estados Unidos e, de lá, se pronunciou pelas redes sociais. “Esperamos que os votos dos 315 deputados sejam respeitados.
A harmonia entre Poderes só ocorre quando todos usam o
• Invadiu competência privativa do Legislativo.
• Esvaziou os efeitos da Resolução nº 18/2025 (que foi aprovada no plenário), suspendendo a ação penal.
• Ignorou que a denúncia da Procuradoria-Geral da República descreve uma conduta contínua, com atos ocorrendo inclusive após a diplomação do deputado, o que justificaria a suspensão total da ação penal.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que passa longe de qualquer desgaste com o Supremo desde que jantou na casa de Alexandre de Moraes, foi obrigado a se manifestar. Ele viajou para um evento nos Estados Unidos e, de lá, se pronunciou pelas redes sociais. “Esperamos que os votos dos 315 deputados sejam respeitados. A harmonia entre Poderes só ocorre quando todos usam o mesmo diapasão e estão na mesma sintonia”, disse (veja a postagem abaixo).
Hugo Mota - Ingressamos nesta terça-feira no Supremo Tribunal Federal com uma ação para que prevaleça a votação pela suspensão da ação penal contra o deputado Delegado Ramagem (PL-RJ). Por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), a ser julgada pelo plenário do Mostrar mais
No aspecto técnico, o que a Câmara cobra é o conceito de contenção recíproca entre os Poderes. As balizas são dois artigos constitucionais: 2º e 53. No primeiro caso, trata-se da separação dos Poderes; no outro, da imunidade parlamentar. É como se a Câmara dissesse: “Nem o Supremo nem o governo podem se meter em assuntos desta Casa”. A exceção é quando um deputado se envolve em crime em flagrante.
O documento da Mesa Diretora diz textualmente: “Ao restringir, de forma absoluta e desproporcional, o alcance da prerrogativa conferida constitucionalmente ao Parlamento, a decisão esvazia o papel do Poder Legislativo”. Continua: o STF assumiu “indevidamente a função de controle político-parlamentar”.
Um fato relevante é que, se essa reação da Câmara tivesse ocorrido em fevereiro de 2021, no episódio envolvendo o então deputado Daniel Silveira, preso até hoje, o Parlamento não estaria ajoelhado para o Judiciário. Bastaria que o antecessor de Hugo Motta, seu padrinho político Arthur Lira (PP-AL), defendesse a separação dos Poderes e a inviolabilidade do mandato.
“É necessário reafirmar que não cabe ao Poder Judiciário substituir-se ao juízo político conferido ao Parlamento no tocante à conveniência da sustação, bem como a sua extensão. A interpretação sistemática e funcional do texto constitucional impõe o reconhecimento do caráter institucional da prerrogativa — exercida dentro dos estritos limites da legalidade e de forma transparente — como instrumento legítimo de contenção recíproca entre os Poderes.” (ADPF apresentada pela Câmara dos Deputados)
Do ponto de vista político, para quem acompanha a trajetória de Hugo Motta, agora visivelmente amedrontado na cadeira, é pouco crível que ele vá enfrentar o Supremo. Segundo assessores técnicos da Câmara com anos de estrada, ele encontrou um abrigo jurídico: apresentou uma defesa sem data para ser analisada pelo STF, que não foi redigida por ele e vai aguardar o tempo passar. Como o recurso pede que o caso seja analisado pelo Plenário da Corte, e não pela Primeira Turma, se isso for aceito, existe uma chance em dez possibilidades de o relator sorteado ser André Mendonça. Ele poderia trancar a ação penal.
Talvez esse seja o único temor da Primeira Turma. Se a ação penal for paralisada, não só Ramagem teria o caso interrompido, mas todos os réus, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. O ministro Flávio Dino decidiu antecipar seu julgamento em discurso na quarta-feira, 14. “Se assim fosse, nós teríamos uma dissolução da República. Cada Poder e cada ente federado faz a sua bandeira, o seu hino, emite a sua moeda e, supostamente, se atende a separação dos Poderes”, afirmou.\
A fala de Dino é capenga: não se trata de discutir o federalismo, “dissolução da República”, e os entes já têm suas próprias bandeiras e hinos — moedas, não. O que a Câmara pede é simplesmente que o Supremo respeite a Constituição. É a defesa da caixa de ressonância da sociedade que, apesar de suas demasias e tropeços, é formada por representantes eleitos pelo voto.
O Supremo Tribunal Federal colocou o Legislativo numa encruzilhada. Ou os parlamentares defendem seus mandatos — e, consequentemente, os eleitores que os enviaram para lá —, ou nem precisam voltar a Brasília.
Sílvio Navarro - Revista Oeste