sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

'Inocência assassinada', por Cristyan Costa

Preso do 8 de janeiro que tem autismo segue com tornozeleira, mesmo com pedido de absolvição da PGR


Jean de Brito da Silva, de 28 anos, foi preso pela polícia no gramado do Palácio do Planalto enquanto tentava ajudar idosas a se protegerem de bombas de gás - Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste


Incontáveis sacos de lixo amontoados no chão de terra batida, moradias precárias rodeadas de material enferrujado e cheiro de coisa estragada. 


É em meio a esse cenário, em Juara (MT), a pouco mais de 650 quilômetros de Cuiabá, que Jean de Brito da Silva, de 28 anos, tenta restabelecer a vida suspensa em 8 de janeiro de 2023, quando foi preso pela polícia no gramado do Palácio do Planalto enquanto tentava ajudar idosas a se protegerem de bombas de gás. Ele ficou seis meses enjaulado, sem contato com a família, ao lado de outros 12 homens em uma cela apertada na Papuda, em Brasília. Durante esse período, tomou banhos gelados, comeu mal e fez as necessidades fisiológicas na frente de todos. A ProcuradoriaGeral da República (PGR) o denunciou por tentativa de golpe de Estado e dano ao patrimônio, entre outros crimes. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), só deu a “meia liberdade” a Silva em virtude de um laudo robusto publicado pela Revista Oeste, no qual o médico Moacir Toledo diagnosticou o jovem com autismo e deficiência intelectual.


O catador de material reciclado Jean de Brito da Silva, em meio ao seu local de trabalho. Com autismo e deficiência intelectual moderada, ele foi preso durante o 8 de janeiro (10/11/2024) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste


Mesmo diante dessa evidência, desde julho do ano passado Silva é atormentado por uma tornozeleira eletrônica que não lhe permite sequer sair do município. Hoje, sua vida se restringe à casa e ao trabalho de catador de material reciclável. Por causa da meia liberdade, ficou impossibilitado de visitar amigos que moram em outras regiões e o avô doente, que está acamado em uma cidade vizinha. Além disso, o equipamento o proíbe de sair à noite e aos fins de semana. Dessa forma, Silva deixa de ganhar um dinheiro extra proveniente de alguns bicos em festas de aniversário, que ocorrem geralmente aos sábados e domingos e nas quais atua como cuidador de crianças ou salva-vidas — ofício que aprendeu em um curso pago com esforço por seus pais. A tornozeleira faz ainda com que Silva seja alvo de olhares curiosos e chacota de algumas pessoas de Juara, sobretudo aquelas que votaram em Lula na eleição presidencial de 2022. 

“Não bastasse a humilhação que representa essa corrente na canela do meu filho, temos de passar por constrangimentos desse tipo”, desabafou a mãe de Silva, Edna Brito, de 43 anos. “Meu marido orientou a não falar nada a essa gente, até para não criar mais confusão. O melhor a fazer é deixar o tempo resolver. Sei que Deus está no controle de tudo.” Mesmo no calor, Silva opta por usar calça jeans, a fim de esconder a tornozeleira eletrônica.


Silva mostra a tornozeleira eletrônica que usa desde julho do ano passado (10/11/2024) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste


Rumo à capital e de volta para casa

Embora os insultos tenham conotação partidária, Silva não entende muito de política e prefere obedecer ao conselho do pai, José, de não rebater aos ataques, para evitar atritos. “Defendo a família e a religião e sou contra o aborto”, disse o jovem, ao contar por que viajou para Brasília um dia antes dos protestos de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes em um ônibus que partiu de Juara rumo à capital federal. Sem o conhecimento da família, embarcou a convite de manifestantes, que disseram a ele se tratar de uma viagem em prol de um ato em defesa desses valores. 

Ao chegar ao destino, Silva ficou pouco tempo no Quartel-General do Exército e, quando se deu conta, já havia sido engolido pela onda de verde e amarelo que inundou a Esplanada dos Ministérios. Capturado pelas forças de segurança do Distrito Federal na sequência, mal poderia imaginar que ficaria metade de um ano encarcerado por delitos que nunca cometeu e que não compreende o que representam. 

No período em que permaneceu detido, o autista se comunicou a maior parte do tempo com seus advogados, Silvia Giraldelli e Robson Dupim, que atuam no processo sem cobrar nada. No dia em que Silva deixou a penitenciária, a defesa conseguiu dinheiro, por meio de uma vaquinha organizada com a ajuda de outros advogados do 8 de janeiro, e comprou uma passagem aérea para o retorno à terra natal, onde o pai e o irmão aguardavam no Aeroporto de Sinop, que fica a cerca de 300 quilômetros de Juara. 


Desde o início, Giraldelli e Dupim tentam provar a inocência do autista. Após inúmeros apelos, em fevereiro deste ano a PGR se manifestou a favor da absolvição. No parecer, a procuradoria observou que a defesa de Silva comprovou que ele tem autismo e retardo mental. “Um laudo pericial concluiu que o acusado era, ao tempo dos fatos, totalmente incapaz de entender o caráter ilícito de seus atos e de determinar-se de acordo com tal compreensão”, constatou a PGR, no documento. “A manifestação é pela absolvição imprópria, haja vista o reconhecimento da inimputabilidade de Jean de Brito da Silva, aplicando-se a medida de segurança prevista no art. 96, II, considerando o disposto no art. 42, ambos do Código Penal.” Moraes, contudo, permanece inerte nesse processo.



Miséria 

Somado aos problemas psicológicos, Silva sofre com dificuldades financeiras. Ele e a família composta de outras seis pessoas, que incluem os pais, irmãos, cunhada e tio, recolhem reciclados em Juara para vender. Tudo é feito no próprio terreno onde moram, do despejo ao produto final, em uma máquina de prensar. A jornada de trabalho, que ultrapassa as oito horas de um regime CLT, não é nada recompensadora. Como nem sempre há material que pode ser reaproveitado, Silva e seus parentes passam meses ganhando bem pouco. Quando há períodos generosos, arrecadam entre R$ 5 mil e R$ 7 mil. Administrada pelo pai, a quantia é repartida entre todos


Silva e sua família (10/11/2024) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste


A falta de recursos se reflete nas condições das residências. A casa onde Silva mora com a mãe e o pai, por exemplo, é feita de madeira velha, que sustenta telhas quebradas por onde penetra a água da chuva, estragando os móveis. Há dias em que a terra do chão sem piso fica encharcada. No quarto de Silva, a mobília também é bastante rudimentar. No banheiro, que fica do lado de fora da casa, existe um vaso sanitário e um chuveiro, mas não há saneamento básico. A família usa água de poço e despeja os dejetos numa fossa. Para ter ideia da situação de miserabilidade, a energia elétrica chegou à família pouco mais de um ano atrás. Eles pagaram R$ 2,5 mil por um transformador capaz de levar luz às casas, sem qualquer ajuda do poder público. Antes disso, usavam lâmpadas a óleo para iluminar o local.

 

O catador de material reciclado Jean de Brito da Silva, em frente à sua casa, em Juara (MT), a pouco mais de 650 quilômetros da capital Cuiabá (10/11/2024) | Foto: Cristyan Costa/Revista Oeste




Falta dinheiro até para comprar comida. Por isso, a família conta com a ajuda de uma igreja evangélica que, quando possível, doa algumas cestas básicas. Os Silva também criam algumas galinhas para terem ovos e, às vezes, a própria carne dos animais. Elas ciscam livremente e deixam rastros de fezes no local onde também brincam os sobrinhos pequenos do autista. Em meio a isso, a mãe lamenta não ter condições de comprar todos os medicamentos necessários para os problemas cardíacos que tem, visto que nem todos podem ser adquiridos por meio do Programa Farmácia Popular. 

“Quando sinto dores, interrompo o serviço e descanso um pouco”, conta Edna. “Porém, isso atrapalha na nossa dinâmica porque, na falta de braços, o trabalho fica dobrado. Esse trabalho é braçal.” A reivindicação principal do autista e de sua família é remover, quanto antes, a tornozeleira que os perturba diariamente. “Só quero tocar a minha vida ao lado dos meus parentes, e em paz”, disse Silva.

 Esse também é o sonho de outras centenas de condenados e de gente que ainda aguarda julgamento por causa do 8 de janeiro. O STF já condenou 310 manifestantes a penas que chegam a 17 anos. Aproximadamente 500 firmaram o acordo de não persecução penal (ANPP) da PGR, no desespero para deixar o inferno que os atormenta todos os dias. Esse acordo prevê a confissão de crimes, o pagamento de multa que pode chegar a R$ 5 mil e a realização de um “curso da democracia”. 



Além de Silva, o grupo de “golpistas do STF” inclui a aposentada Vildete Ferreira, de 73 anos, sentenciada a 12 anos em regime fechado, a diretora de escola Iraci Nagoshi, 71 anos, condenada a 14, e a dona de casa Adalgiza Dourado, 64, que cumprirá 16 anos e meio de prisão. É para esse tipo de gente que os ministros do STF, jornalistas estatizados, artistas e intelectuais gritam as palavras “sem anistia”. Enquanto condenar esses “criminosos” por ameaça à democracia, o Brasil jamais será um país verdadeiramente democrático.


Revista Oeste, por Cristyan Costa