terça-feira, 29 de outubro de 2019

Existe vida depois da Lava Jato

Inconsciente Coletivo visita o reluzente apartamento de Nelma Kodama, “a dama da Lava Jato”
Pessoalmente, a doleira Nelma Kodama, 53 anos, ex-namorada de Alberto Youssef, também conhecida como “a dama do mercado”, prisioneira ilustre da Lava Jato, condenada por lavagem de dinheiro, organização criminosa, evasão de divisas e corrupção ativa, é uma simpatia. Aquele tipo de pessoa falante, dotada de traquejo social, e cheia de histórias da vida pra contar.
Sempre achei que naquela foto que postou no seu insta, a do Chanel com tornozeleira, e as rachaduras no pé, meu Deus, que imagem icônica, que nela haveria de ter uma resposta, uma narrativa, sobre o que foi a Lava Jato, sobre os valores e sobre um jeito de pensar, que bem ou mal, estariam enraizados no inconsciente coletivo do brasileiro.
Esta pois foi a investigação a que me lancei. Tivemos três longos encontros, e também li seu livro, “A Imperatriz da Lava Jato”, em depoimento ao jornalista Bruno Chiarioni, que foi lançado na semana passada. A capa do livro estampa a tal foto icônica, desta vez com o pé tratado pelas magias do Photoshop.
O que já é um indicativo – Nelma não só parece se orgulhar da foto, como também já divulgou um tutorial sobre como se retira uma tornozeleira eletrônica. Afinal, o quanto de ultraje, ou de provocação, ou de ironia, de demonstração de poder ou simplesmente de self contentamento e vaidade, tudo isso carrega? Eis a questão. Chanel e tornozeleira eletrônica andando juntos. (E aqui a imagem original, para quem tiver a curiosidade de comparar os pés…)
Chiarioni fez um ótimo trabalho na organização dos assuntos do livro, mas não dá pra dizer que se trate de uma obra-prima, até porque muitas páginas são gastas para Nelma contar a sua versão dos fatos. Ela insiste por exemplo, que os 200 mil euros que levava para Milão quando foi apreendida em Cumbica, em 2014, estavam no seu bolso e não na calcinha (“até mesmo por uma questão higiênica”, brincou), como saiu divulgado na ocasião em vários meios de comunicação.
Mais interessante é conhecer como foram os “loucos anos” em que levava milhões de dólares de avião para o Paraguai. 400 mil por dia, chegou a me dizer. Saindo de São Paulo, com escala no Rio de Janeiro, rumo à fronteira, tudo na mesma noite. Este afinal era o trabalho dela. Comprar e vender dólares. Lavar dinheiro, não importando de onde viesse ou para onde fosse.
Ah, os “loucos anos”. Trabalhando duro, 16 horas por dia, para passar o feriado em Paris, sem levar mala, e voltando com o limite de bagagem estourado de Chanel, Louis Vuitton, Gucci e outras grifes do tipo crème de la crème. Hotéis, refeições, mimos… como comentou, “consegui ter tudo que o dinheiro consegue comprar”.
Nelma insiste que seu crime foi fiscal, e não exatamente de corrupção com dinheiro público, embora tenha assumido 91 operações de câmbio contratadas por Youssef. Muitos artigos já foram escritos a esse respeito. E, para dizer a verdade, indo um pouco além da discussão sobre o estatuto jurídico e político de sua atividade, já tão explorado na mídia, decidi focar esta reportagem em um aspecto que consta da sentença do então juiz Sérgio Moro, que a condenou a quase 15 anos de prisão – a atribuição de um perfil de “personalidade criminosa” a Nelma.
A pergunta que me faço, é se ela se arrepende ou não do que fez, e se está regenerada, depois de dois anos e meio na prisão e uns três de tornozeleira – ela se livrou do aparato há 3 meses, com o indulto concedido pelo presidente Michel Temer. Usar a tornozeleira, conta ela, é igual a cinta de cirurgia plástica – incomoda no início, mas depois parece que faz parte do corpo.
Não há dúvidas de que todo este período lhe deixou sequelas, inclusive no âmbito das relações sociais e familiares. Nelma diz que “tudo que eu tinha para sofrer, eu sofri”, e que ao mesmo tempo, nunca foi tão feliz como no presente momento.
Seu apartamento, com mais de 450 metros quadrados no Campo Belo, em SP, parece realmente com a loja Daslu dos bons tempos. Não apenas por conta do inacreditável closet como também pelo uso exagerado do branco inclusive no piso para realçar todo o mobiliário. Por exemplo, temos um detalhe em azul turquesa do copo de vidro de Murano que desenhou, guardado na cristaleira, concebido assim para combinar com o veludo da poltrona de mesma cor; a réplica de um leão, a uber banheira em destaque no quarto, o console de TV que ela própria também desenhou representando ondas e que deve ter custado os olhos da cara.
Ser uma mulher de bom gosto custa caro ela me comentou, embora hoje diga que se contenta com muito menos. As marcas do tempo e dos acontecimentos também se projetam sobre as paredes do apê. Os quadros de Di Cavalcanti e Portinari, foram parar no Museu Niemeyer de Curitiba. Hoje estão os quadros pintados pela mãe de Nelma o que afinal, talvez tenha mais valor emocional para ela.
Também as portas de correr das sapateiras estão danificadas. Não dá pra puxar com tanta força, se não arrebentam. É que o pessoal da perícia da Polícia Federal mexeu nelas com a mão pesada.
Mas então, quando estas portas se abrem, caramba. São fileiras e fileiras. O mesmo valendo para qualquer peça de vestir ou acessório. Há uma coleção de lenços. Outra de chapéus. E por aí vai.
Nelma já me comentou que tem roupa para usar até o fim da vida. Muitas delas nunca usou. Estão todas em um notável bom estado de conservação. Recentemente, divulgou que fará um bazar, para arrecadar algum dinheiro que lhe ajudasse a pagar as contas.
Lembrando que Nelma tem direito a morar neste apartamento até 2022. Depois haverá um leilão, e a prioridade de compra será dela. Hoje ela diz viver do aluguel de 5 unidades de um hotel (seria este seu patrimônio), e de sua atividade como consultora em assuntos relacionados ao mundo das finanças e decoração.
Acabou de comemorar seu aniversário em uma viagem à Europa com seu namorado, o lobista Rowles Magalhães. Surgiu a notícia de que o MP quer saber quem bancou a viagem.
Não me causaria impressão se um dia desses Nelma aparecesse com um programa de variedades em um destes canais populares de TV aberta, com dicas de decoração, moda e gestão financeira. Será que ela tem potencial para se tornar celebridade artística? Conta ela que nunca foi hostilizada em público – pelo contrário, o povo lhe pede autógrafo nas ruas.
Vamos começar falando sobre a foto. Qual é a história dela?
Essa foto foi tirada em 2016. Estava nos arquivos da Veja. Postei ela em junho deste ano, porque eu e minhas amigas decidimos fazer um bazar. Tentei provocar minhas amigas postando essa foto, e virou hit. Com a maioria das pessoas criticando, “onde já se viu uma pessoa que está presa, usando Chanel?”.
Como vê essas críticas?
Eu acho que a maioria das pessoas são desinformadas, desconhecem minha história. Elas não sabem que conquistei tudo isso com meu trabalho. Nunca roubei ninguém. Eu era doleira, comprava e vendia dólar, nunca fiz negócio com político e com empreiteiro. Na verdade eu nem sou da Lava Jato. Há um grande equívoco nisso.
Mas pera aí, contravenção não é crime?
Concordo com isso. Mas eu era como uma taxista, apenas comprava dólar que eu não sabia de onde vinha, e revendia.
Vamos colocar as coisas em outros termos. Quando as pessoas saem para viajar e precisam de dólar, muitas vezes elas não compram tudo em um banco. Elas procuram o doleiro. Quando um médico encerra sua consulta, é comum perguntar se o pagamento será mediante apresentação de recibo ou sem. O mesmo com os advogados. O próprio presidente Bolsonaro já declarou que já sonegou.
E também tem as taxas altas de impostos. Elas forçam a sonegação. Isso é um vício que todo mundo tem – quem não sonega?
Você se arrepende da foto? 
Não, aliás não me arrependo de nada que fiz na vida. Não apagaria nada da minha experiência. Tenho cicatrizes que nunca vão se fechar, mas isso é algo que tenho que aprender a conviver e administrar.
Você já disse que conseguiu tudo que o dinheiro pode comprar.
Cada um com sua ambição. Dentro da minha, eu comprei e tive tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Todas as roupas que quis, sapatos, bolsas, viagens, todas as pessoas que quis direta ou indiretamente ajudar. Quando vim de Lins, no interior, para São Paulo, com 700 dólares no bolso e um diploma de odontologia, meu sonho era mais modesto. Queria ganhar uns 5 mil dólares, comprar um apartamento com dois quartos, ter um carro importado, e só.
Qual é seu objetivo na vida?
Meu objetivo era parar de trabalhar aos 50 anos. Construí este apartamento com este pensamento. Levei dois anos reformando ele. Queria ter dinheiro para viver até os 80 anos. Como uma renda, sabe. Porque tinha uma vida muito agitada, trabalhava 16 horas por dia. Agora que tirei a tornozeleira, estou tentando recomeçar minha vida.
Quando olhei aquela foto pela primeira vez, achei-a muito icônica. Não tem provocação nessa foto?
Depende de quem olha. Você teve esse sentimento. Mas teve uma outra pessoa, que por causa dessa foto me procurou, e hoje estou me relacionando com ela. Ele olhou para essa foto e pensou, “puxa vida essa é uma mulher de coragem, para colocar uma foto dessa em uma situação dessa, então eu vou conhecer essa mulher”.
Quem é esse cara?
Um pecuarista do Mato Grosso.
Voltando à foto, teve gente que falou de seu pé.
Isso, que estava rachado e cascudo, mas eles não sabem que durante esse tempo, onde eu estava, não tinha manicure nem pedicure. Fazia apenas dois ou três dias que eu tinha saído da prisão, quando esta foto foi feita.
Como é a vida com tornozeleira? Tenho a impressão de que viver em domiciliar pode acabar sendo uma punição muito branda. Ou estou enganado?
Em Dubai eles cortam as mãos…
Bem, primeiro, é melhor usar tonozeleira do que estar em um presídio confinada em 1 por 2. Sem dúvida. Segundo, no meu caso cumpri meu regime fechado e obtive o benefício de estar em domiciliar com tornozeleira, até tirá-la.
Pegue o caso do Marcelo (Odebrecht). Independente dele estar na sua casa ou na superintendência da Polícia Federal, nunca mais será a mesma pessoa. Por que? Por tudo isso que ele passou. Na família, com a esposa e as filhas, sempre fica aquela marca. Não vai ser igual, nada é igual. E outra, a pessoa perde o poder. E perde a liberdade. Isso é pior que tudo.
Perde reconhecimento.
Perde. Perde o respeito por si própria. Como se aquilo fosse uma lepra. Isso aí já é uma grande punição. A pessoa nunca vai se recuperar. Ela precisa ser muito forte, ter coragem, pra vida ser um pouco mais normal.
Você é muito hostilizada nas ruas?
Pelo contrário, as pessoas param, querem tirar fotografia. Pedem autógrafo.
Nunca fui hostilizada. Saio na rua normal, ninguém me barra ou xinga. Hostilizada eu fui apenas no insta, quando postei a foto.
Mas alguns presos tiveram problemas. Eu lembro que o Nestor (Cerveró), quando viajou de volta para casa no avião, foi incomodado. Muito chato.
Qual sua opinião sobre a Lava Jato?
Hoje tenho uma visão diferente da que eu tinha. Conforme as coisas foram acontecendo, fui entendendo. No início pensei que era uma operação para acabar com a corrupção e endireitar esse país. Hoje vejo que não aconteceu isso. A corrupção continua, ela é sistêmica. As pessoas foram punidas, o próprio Intercept mostrou que foi uma operação conduzida, ao que me parece, para colocar uma pessoa na cadeia.
O Brasil sofreu muito com isso, o Brasil parou, a credibilidade está muito afetada. Há uma crise econômica mundial, mas a Lava jato piorou as coisas. Veja muitos profissionais que acabaram se transformando em motoristas de uber. Médicos, engenheiros, eles foram perdendo espaço, isso é muito triste. Quando voltei a São Paulo depois da prisão, a cidade não tinha nada a ver com aquela que conhecia. As pessoas estão tristes, castigadas, sofridas, preocupadas.
Quanto se gastou com a Lava Jato, e quanto ela recuperou? Quantas pessoas perderam o emprego por conta disso? Isso tudo mexe com a economia de um país. O Brasil retrocedeu quantos anos? 50?
Tem méritos a operação?
Eu critico a operação pelos métodos. Não foi respeitada a presunção de inocência. Por outro lado, foi muito legal a Lava Jato ter colocado gente graúda na prisão. Esse povo tem que pagar. Foi brilhante o que foi feito. Pela primeira vez não virou pizza. Os responsáveis foram presos. Só que tem muito mais gente que precisa ser presa.
Que dizer sobre os métodos da Lava Jato?
Tudo isso foi conduzido, está aí, para quem quiser ver. Fui julgada por ter uma mente criminosa, uma personalidade criminosa. Mas o que me diz de um ex-procurador que vai matar o outro, isso não é produto de uma mente criminosa? E por que ele não será julgado?
No mínimo é uma falta de respeito, educação e controle emocional. Imagina essa pessoa te julgando, como ela tem condição de julgar? E ganhando bem, com tudo pago. Auxílio-moradia, escola, segura de saúde, aposentadoria. Eu não tenho nada disso.
Eu te pergunto: e os bancos? Fizera, grandes transações envolvendo propina – o mesmo trabalho de taxista que eu fazia, praticamente. Por que não foram presos? Por que fui presa? Por que não se investiga isso? Se houve movimentação bancária de pagamento de propina e desvio de dinheiro, passou por onde? Antes de passarem por mim, devem passar pelas normas do Banco Central. Quem que audita isso, sou eu o Banco Central?
Mas você lavava dinheiro. Podia ser dinheiro de tráfico de drogas, de armas, do que fosse…
Dinheiro sem procedência. Eu comprava e vendia. Por exemplo, você me dava ou dinheiro aqui e eu te depositava lá fora.
Eu não sei. Dinheiro não tem origem. Eu era uma intermediária. Uma coisa é o fiscal, a outra é a origem do dinheiro. Eu era a agência que intermediava, eu ganhava o spread entre isso aí. Não sou uma instituição financeira.
E o Alberto Youssef?
Com ele considero que fui casada pessoalmente e comercialmente. Alberto fazia negócios com empreiteiros, que por sua vez faziam negócios com políticos. E ele fazia comigo. Eu fiz a intermediação da compra e venda, apenas isso. Eu só intermediei e ganhava um spread entre a compra e a venda. Não sou obrigada de saber a origem do dinheiro, não sou o Coaf, não sou o Banco Central, não sou os bancos.
Que acha que poderia ser feito para melhorar a corrupção?
Muito difícil corrigir isso. Não sei responder. Uma coisa que deveria ser feita é uma revisão fiscal, pois a carga de imposto é altíssima, uma das maiores do mundo. Fora isso você paga IPTU, IPVA, seguro obrigatório, tudo que você compra tem ICMS. Você paga por aquilo que não recebe. As ruas têm buraco. Não tem saúde, segurança, escolas. Você  tem alegria de pagar isso? Voce não tem. Na Europa sim, você tem a alegria do seu filho estudar em escola pública, porque são instituições capacitadas.
Se fosse dar aula de corrupção para a polícia, o que falaria?
Bem, primeiro que a corrupção já está dentro da polícia. Começa por aí. A base de um país está na educação, falta esse compromisso com a sociedade.
A delação é uma coisa boa?
Depende pra quem faz e pra quem recebe. No meu caso, não foi. Saí sem nada. E outra coisa, o delator deve ter protegida sua identidade. E não foi nosso caso. Todos dias estávamos expostos nos jornais, em livros ou no cinema.
Tinha tortura?
Depende do que chama de tortura. Só fato de você estar preso já é tortura. Sua liberdade é tolhida. E muita pressão psicológica: por exemplo, quando seu advogado te diz que não adianta entrar com habeas corpus, que a primeira e a segunda instância já estão casadinhas, que então será preciso recorrer aos órgãos acima. Primeiro você é preso para depois se defender. Muita gente foi presa sem prova. A Carta Magna foi rasgada.
Você concorda com a prisão em segunda instância?
Não pode. Está na Carta Magna, tem que ter transitado em julgado.
Por outro lado, quem tiver uma boa assessoria jurídica se safa.
É um direito, não fui que escrevi a Carta Magna. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Estou falando de um direito que está na Constituição. Vamos ver o outro lado de uma pessoa que é inocente? Ela tem que esperar até a última instância?
Qual sua impressão pessoal sobre o Moro?
Se ele fosse bem intencionado, não me julgaria pela minha personalidade. Me julgaria pelos meus crimes.
Ele conduziu o Banestado, ele condenou o Youssef, homologou sua delação. E depois na Lava Jato de novo estava ele e outros delegados e alguns procuradores. É no mínimo estranho.
Por que?
Deixa só esse ponto de interrogação. Os mesmos personagens de novo?
Como se isso não bastasse, depois veio à tona essa troca de mensagens. Você imagina divulgar meu advogado trocando mensagem com o Moro, como ia ser repercutido?
Moro não deveria ter aceito o Ministério da Justiça. Deveria continuar a carreira como juiz.
Você tem personalidade criminosa?
Todos têm personalidade criminosa. O médico tem. O advogado também. Na padaria, quando não te dão a nota fiscal, também. Eu acho que todo mundo tem a personalidade criminosa. Mas quando você assume papel de juiz, ou deputado eleito pelo povo, você não pode exercê-la. Por isso que não tem receita para acabar com a corrupção e nem manual. Você teria que ser um santo, e acho que não existe santo.
Nunca matei ou roubei, só comprava e vendia dólar. Nunca fui ministra ou procuradora, ou qualquer coisa ligada a órgãos públicos. Eu era apenas uma doleira que saiu de uma cidade no interior, e foi atrás de seus sonhos.
E sobre o Deltan, qual sua impressão?
Não tenho impressão nenhuma, porque quando o conheci, estava assustada, presa, passando fome e frio, sendo humilhada e maltratada. Não tenho condição nenhuma de formular um juízo a respeito de um homem jovem, arrogante e sem conhecimento da vida.
A Polícia Federal e o Ministério Público; qual sua medida de confiança nestas instituições?
Existem pessoas sérias, sim. Mas outras que deveriam ser investigadas profundamente. Diante de um país tão grande e com tantos problemas, só uma minoria é que é séria e comprometida.
Homens e mulheres são diferentes na prisão?
Homem e mulher é diferente. Aliás convivi muito com homens no trabalho, porque minha profissão é masculina. O homem chora porque perdeu tudo aquilo que achou que ele era. Acho que a mulher chora mais à vontade.
Na prisão convivi com homens poderosos: políticos empresários, e também traficante e assaltante de caixa de banco. E vou te falar, traficantes e assaltantes eram mais corajosos – choravam menos.
Os poderosos chegavam perturbados achando que com o poder que tinham, com sua influência política e econômica, chegavam achando que iam sair ilesos, que era só uma questão de tempo. Mas na hora que você vê que não vai sair, que ou faz um acordo ou apodrece, nessa hora quem não tem fé vira até macumbeiro.
Que acha do Bolsonaro?
Acho que ele é muito radical, fala algumas coisas que um presidente não deveria falar.
Teria votado em quem, se pudesse votar?
Em ninguém. Porque meu candidato não estava lá. Tomara que ele ressurja.
Lula?
Acho que uma pessoa sair de onde ele saiu, vinda de família humilde e sem estudo, chegar onde chegou, tem um grande valor. Em sua época como governante, as pessoas estavam mais felizes, havia mais empregos. Havia mais oportunidade, especialmente para a classe mais pobre.
Considera injusta sua prisão?
Se considerar que ele está preso por conta de segunda instância e sem prova alguma, sim, acho que é injusto sim.
Gostaria que traçasse um perfil sobre alguns dos presos famosos com quem conviveu.
Convivi muito tempo com vários empresários e alguns políticos, e era muito engraçado porque quando caía ali dentro ,não era mais o político e o empresário; você era uma pessoa comum. Então ali você via realmente como a pessoa era, na sua dificuldade, na sua falta de liberdade.
Nestor me marcou muito porque era uma pessoa muito educada, muito inteligente e tudo nele era “íssimo”, – excelentíssimo, lindíssimo, queridíssimo. Ele tinha tiradas muito engraçadas. Teve um dia que ele foi na CPI, estava tão nervoso que ele pegou o Glade e usou como desodorante…
Vaccari era uma pessoa muito disciplinada. Dormia sentado depois do Jornal Nacional, como se estivesse meditando, super regrado.
André Vargas também tinha tiradas incríveis. Era engraçado, ou a gente ria ou a gente chorava.
E o Marcelo?
Marcelo era muito disciplinado, acordava às 6h e ficava até às 13h fazendo exercício, incansável. Tinha alimentação muito regrada. Ali dentro também era o comandante das coisas.
E o Dirceu?
Dirceu era bem diferente. Ele tinha uma particularidade. Foi um cara que teve muito poder. Falava que era ele quem tinha criado o Lula e a Dilma. Lembro quando teve a votação do impeachment – a gente assistindo na TV, ele ficou enlouquecido, dizendo que tínhamos que pegar nas armas e ir para ruas.
Como está seu momento atual?
Tenho uma vida normal, acordo, tomo meu café, tenho tempo pra mim mesma, vou ao shopping, faço meu trabalho de consultoria, tenho minhas amigas e tempo pra desfrutar minha liberdade.
Consultoria do que?
Tenho credibilidade e conheço muitas pessoas. Por conta disso elas me procuram pedindo conselhos sobre finanças, moda, decoração.
E o livro?
O livro eu comecei a escrever na carceragem, desde o primeiro dia. Era como se eu estivesse conversando comigo mesma. Tínhamos direito a 5 folhas de sulfite por dia. Imaginei que quando saísse pudesse um dia publicar. Contar um pouco de mim para que as pessoas pudessem conhecer esse outro lado, não aquele lado que julgam saber o que sou, o que eu fiz. O livro tem um mix de tudo, narra minha infância, época de faculdade quando cheguei em São Paulo, algumas coisas da minha profissão, da minha vida, e algumas partes do diário que escrevi na prisão.


Morris Kachani, O Estado de São Paulo