terça-feira, 25 de dezembro de 2018

"Ossos do ofício", por João Pereira Coutinho

O melhor momento cultural de 2018? Não é um livro, não é um filme, não é um disco. É uma carta de Giacomo Leopardi que o “New York Review of Books” traduziu e condensou. A missiva trata de um fenômeno intemporal —a busca da glória literária—, e Leopardi decidiu partilhar os seus conselhos pela boca de Giuseppe Parini, o grande poeta italiano do século 18.
A escolha é acertada: Parini, para além de poeta, foi um consumado satirista.  O que permite cobrir as suas palavras com um manto de irrisão e ambiguidade que escapou à vetusta publicação americana.
Não que isso interesse: “ridendo castigat mores”, a rir se corrigem os costumes, como diriam os clássicos. E o objetivo de Leopardi, por meio do seu personagem, é frustrar a vaidade dos escritores que se entregam à “loucura da arte” em busca do mais efêmero dos prêmios: a glória.
Mas por que motivo a busca da glória literária é quimera insana e quase sempre 
condenada ao fracasso?
Antes de responder à pergunta, Leopardi começa pelo básico: a vida literata é contrária a uma existência saudável. Viver em posição sentada, com a lapiseira colada aos dedos, é uma forma de tortura que escapou a Dante e à sua “Comédia”. Difícil discordar —e o meu ortopedista que o diga.
Mas a coisa ganha proporções dementes quando aliamos essas flagelações do corpo e da mente com o fantasma da ambição mundana. É a receita para o desastre.
Leopardi não perde tempo com os obstáculos mais prosaicos —as rivalidades, as invejas, as calúnias, os preconceitos, as intrigas, as malícias. Se o poeta tivesse conhecido Henry Kissinger, certamente teria concordado com ele: o motivo pelo qual as lutas entre acadêmicos são tão violentas é porque normalmente está muito pouco em jogo. O que vale para a academia, vale ainda mais para a literatura.
Mas Leopardi se concentra  em três contingências que não envelheceram uma ruga.
Para começar, e partindo do pressuposto de que o escritor produz uma grande obra, é importante saber quem a reconhece como tal. Essa proeza é sempre um exclusivo de uma minoria, o que desde logo limita a dimensão da glória.
Por outro lado, se aceitarmos o argumento de que para apreciar um estilo e uma linguagem é preciso ter uma familiaridade nativa com determinada língua, essa minoria é ainda mais minoritária porque o resto do mundo fica imediatamente excluído.
Por último, só quem escreve bem pode julgar competentemente a boa escrita. A minoria, que já era minoritária, tornou-se minúscula.
Como se isso não bastasse, existem outros fatores que influenciam o trabalho dos críticos. Não basta que um livro seja lido por eles; é preciso que seja lido num dia bom porque os julgamentos literários muitas vezes dependem de circunstâncias extraliterárias.
Quando li essa sentença, gelei e ponderei: quantas das minhas críticas não foram já determinadas pelo estado do meu reumatismo? Falar em ossos do ofício, no meu caso, tem um significado especial.
“Last but never least”: mesmo que o livro seja lido, só é possível revelar a grande literatura quando lemos e relemos a mesma obra. Perante a abundância bibliográfica, quem se pode dar ao luxo da repetição?
Faço minhas as palavras de Leopardi. Embora saiba, tal como ele, que os conselhos de nada valem. A escrita é como uma doença incurável que alguns estão condenados a transportar. O que lhes resta?
Escrever, claro. E, em brilhante paradoxo, esperar que desse lado exista alguém, algures, 
interessado em aplaudir.

P.S. – Sim, o texto de Leopardi é o melhor do ano. Mas, para não fugir à tradição das listas, são estas as minhas escolhas.
Filme – “Trama Fantasma”, de Paul Thomas Anderson, seguido de “No Coração da Escuridão”, de Paul Schrader (a obra-prima que eu nunca pensei que Schrader fosse capaz de fazer).
Livro – “Last Stories” de William Trevor, esse Tchékhov irlandês, morto há dois anos, que está ao nível do mestre russo. Na não ficção, “National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy”, de Matthew 
Goodwin e Roger Eatwell.
Disco – “Both Directions at Once: The Lost Album”, de John Coltrane. Acrescento também as trilhas sonoras de “Trama Fantasma” (Jonny Greenwood) e de “Se a Rua Beale Falasse” (Nicholas Britell).
TV – O documentário “Wild Wild Country”, disponível na Netflix. Na ficção, “Patrick Melrose”, adaptação perfeita do quinteto literário de Edward St Aubyn.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Folha de São Paulo