quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Bolsonaro acerta sobre a África, mas erra sobre cotas, segundo Leandro Narloch

“O português nem pisava na África”, disse Bolsonaro, no Roda Viva, ao ser questionado sobre cotas raciais. “Foram os próprios negros que entregavam os escravos.”
Há um exagero e uma dose de verdade nessa declaração. É claro que os portugueses pisaram na África e, mesmo antes do imperialismo do fim do século 19, realizaram guerras por lá.
Mas a maior parte dos escravos que vieram à América foram, de fato, atacados, capturados, separados das famílias e escravizados por outros negros, e então vendidos aos mercadores da costa e aos navios negreiros. Reis africanos ficaram riquíssimos com o tráfico de escravos e competiam entre si nesse comércio.
Jair Bolsonaro no estúdio do programa Roda Vida, na TV Cultura
O pré-candidato a presidência da república, Jair Bolsonaro (PSL), no estúdio do programa Roda Vida, na TV Cultura - Eduardo Anizelli - 30.jul.2018/ Folhapress
Em 1790, o rei Agonglô, do Daomé, escreveu uma carta ao rei de Portugal explicando por que seu porto de escravos era melhor que o dos concorrentes. “Mandei povoar e endireitar com todo o necessário”, disse ele, para que os navegadores pudessem “desembarcar e fazer o resgate livres de serem roubados” ou “perseguidos como lhes costumam fazer nos portos de baixo”.
Não era uma concorrência pacífica. Em 1787, o rei Kplenga, pai de Agonglô, se irritou ao descobrir que onze navios franceses embarcavam escravos numa praia de Porto Novo. Mandou seus soldados até lá, capturou escravos, sequestrou 14 franceses e 80 canoeiros. Os franceses tiveram de pagar um resgate equivalente a 200 escravos para serem libertados.
Alguns desses nobres escravistas africanos foram destronados em guerras civis, escravizados e enviados para o Brasil com suas dezenas de filhos. Ou seja: muitos negros brasileiros hoje são descendentes tanto de escravos quanto de reis e povos escravistas.
A Inglaterra passou boa parte do século 19 pressionando reis africanos a deixarem de praticar a escravidão e os sacrifícios humanos. Custou a ter sucesso, pois os reis dependiam da venda de escravos para manter o poder.
O tráfico pelo Atlântico acabou em 1850, mas continuou no interior da África. “É o meu principal meio de vida”, disse o rei Glele em 1862. No Daomé, os sacrifícios humanos em grandes festas anuais só terminaram em 1894, quando o lugar se tornou um protetorado da França.
Essa história é inconveniente, mas não sei se vale como argumento contra cotas raciais. Importa pouco a cor da pele de quem traficou escravos para o Brasil; o que importa é que o Estado brasileiro permitiu a escravidão de negros por aqui. E é o Estado (financiado por brancos e negros) que realiza ações afirmativas.
Contra as cotas raciais, prefiro os argumentos do presente, não do passado. A universidade pública e gratuita é uma usina de privilégios: concentra o dinheiro de muitos em poucos privilegiados. Mesmo se só tivesse 100% de estudantes negros ou pobres, produziria desigualdade. Milhões de negros e pobres que não tiveram um ensino básico decente seriam obrigados a bancar, via impostos, o privilégio de poucos milhares de estudantes negros ou pobres.
Leandro Narloch
Jornalista, autor de “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”. É mestre em filosofia pela Universidade de Londres.

Folha de São Paulo