“O português nem pisava na África”, disse Bolsonaro, no Roda Viva, ao ser questionado sobre cotas raciais. “Foram os próprios negros que entregavam os escravos.”
Há um exagero e uma dose de verdade nessa declaração. É claro que os portugueses pisaram na África e, mesmo antes do imperialismo do fim do século 19, realizaram guerras por lá.
Mas a maior parte dos escravos que vieram à América foram, de fato, atacados, capturados, separados das famílias e escravizados por outros negros, e então vendidos aos mercadores da costa e aos navios negreiros. Reis africanos ficaram riquíssimos com o tráfico de escravos e competiam entre si nesse comércio.
Em 1790, o rei Agonglô, do Daomé, escreveu uma carta ao rei de Portugal explicando por que seu porto de escravos era melhor que o dos concorrentes. “Mandei povoar e endireitar com todo o necessário”, disse ele, para que os navegadores pudessem “desembarcar e fazer o resgate livres de serem roubados” ou “perseguidos como lhes costumam fazer nos portos de baixo”.
Não era uma concorrência pacífica. Em 1787, o rei Kplenga, pai de Agonglô, se irritou ao descobrir que onze navios franceses embarcavam escravos numa praia de Porto Novo. Mandou seus soldados até lá, capturou escravos, sequestrou 14 franceses e 80 canoeiros. Os franceses tiveram de pagar um resgate equivalente a 200 escravos para serem libertados.
Alguns desses nobres escravistas africanos foram destronados em guerras civis, escravizados e enviados para o Brasil com suas dezenas de filhos. Ou seja: muitos negros brasileiros hoje são descendentes tanto de escravos quanto de reis e povos escravistas.
A Inglaterra passou boa parte do século 19 pressionando reis africanos a deixarem de praticar a escravidão e os sacrifícios humanos. Custou a ter sucesso, pois os reis dependiam da venda de escravos para manter o poder.
O tráfico pelo Atlântico acabou em 1850, mas continuou no interior da África. “É o meu principal meio de vida”, disse o rei Glele em 1862. No Daomé, os sacrifícios humanos em grandes festas anuais só terminaram em 1894, quando o lugar se tornou um protetorado da França.
Essa história é inconveniente, mas não sei se vale como argumento contra cotas raciais. Importa pouco a cor da pele de quem traficou escravos para o Brasil; o que importa é que o Estado brasileiro permitiu a escravidão de negros por aqui. E é o Estado (financiado por brancos e negros) que realiza ações afirmativas.
Contra as cotas raciais, prefiro os argumentos do presente, não do passado. A universidade pública e gratuita é uma usina de privilégios: concentra o dinheiro de muitos em poucos privilegiados. Mesmo se só tivesse 100% de estudantes negros ou pobres, produziria desigualdade. Milhões de negros e pobres que não tiveram um ensino básico decente seriam obrigados a bancar, via impostos, o privilégio de poucos milhares de estudantes negros ou pobres.