Com Blog do Augusto Nunes, Veja
“A palavra sagra os reis, exorciza os possessos e efetiva os encantamentos. Capaz de muitos usos, é também a bala dos desarmados e o bicho que corrói as carcaças podres”. Estas são palavras do professor e escritor pernambucano Osman Lins (1924-1978).
De repente o Brasil dividiu-se entre aqueles que amam e aqueles que detestam Lula, mas a grande paixão de quem escreve deve ser a do conhecimento, não a do louvor, nem a da execração.
Porque, como já nos alertaram os compositores Sérgio Roberto Ferreira Varela, o Sérgio Natureza (71 anos), e José Antônio de Freitas Mucci, o Tunai (67), “o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões/ Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague”.
Estes são versos da canção As aparências enganam, tornada célebre pela voz da “pimentinha” mais doce e saborosa que o Brasil já degustou, a cantora gaúcha Elis Regina Carvalho Costa (1945-1982), que morreu de morte prematura na intensidade luminosa dos seus 36 anos, uma vez que Elis foi estrela de incomparável esplendor.
Elis não precisou fazer da bunda o chamariz para suas canções, não rebolou de roupa curta, e eventuais estrias e celulite não eram matéria de sua arte.
Ou vocês acham, amigos leitores, que a 9ª sinfonia composta por um Beethoven pelado e executada por uma orquestra de músicos de bunda de fora teria melhores efeitos sobre a educada audiência e o distinto público?
Mas, voltando ao assunto, quem é Lula, este homem amado e odiado pela metade? Aqueles que o amam conhecem o homem ou apenas o personagem que ele mesmo fez de si e no qual passou a acreditar? Aqueles que o odeiam conhecem o homem que a mídia diz estar no retrato que faz da figura desde a década de 70?
Ainda não temos no atacado uma leitura de Lula, do fenômeno Lula, uma radiografia. No varejo, sim. Todos os dias, jornalistas que sabem escrever — penso que ficou uma raridade encontrar jornalista com menos de 50 anos que saiba escrever! — narram o varejo da vida política de cada dia ao modo do verso de João Cabral: “a vida de cada dia, cada dia hei de comprá-la”.
Mas cadê os livros? Cadê um livro que nos diga quem é Lula? E surgiram ainda jornalistas que, vindos do rádio, uma escola extraordinária, como o foi para cantores e músicos, se transformaram também em telejornalistas que souberam unir às duas virtudes dos novos meios, o áudio e a imagem, o fato de saberem escrever!
Poucos sabem, entretanto, quem é o incrível redentor Luiz Inácio Lula da Silva. Jorge Luís Borges conta-nos em O estranho redentor Lazarus Morell que “em 1517, o Padre Bartolomeu de las Casas sentiu muita pena dos índios que se consumiam nos penosos infernos das minas de ouro das Antilhas e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros para que se consumissem nos penosos infernos das minas de ouro das Antilhas”.
O estranho redentor Lazarus Morell termina seus dias em 2 de janeiro de 1835, quando, segundo a fértil imaginação de Borges, estava “capitaneando sedições negras que sonhavam enforcá-lo” ou “enforcado por exércitos negros que ele sonhava capitanear”, aos quais explorara com falsas promessas de liberdade, mas que, depois de descobrirem a verdade, queriam matá-lo. E, apesar de a Constituição americana garantir a igualdade, os negros só se tornariam livres após sangrenta guerra civil de algumas décadas depois.
Dá-se algo muito semelhante no Brasil de Lula, com quase duzentos anos de atraso. Os ricos ficaram cada vez mais ricos e cada vez em menor número. O nome dos pobres agora é Legião, pois gigantescos contingentes das classes médias urbanas engrossaram suas fileiras. Pais e mães da pátria se alternaram no poder nas últimas décadas dizendo representar o povo e guiá-lo por novos caminhos, sem entretanto sequer indicar a direção.
Lula é o grande enigma destes tempos e destes quadros. E não tivemos ainda um livro que o explique. Lula não é o Diabo. O Diabo enfrenta uma força poderosíssima, que sabe que vai derrotá-lo, e não faz coligação com ninguém. É coerente. De Lula pouco sabemos. Ainda. Falta o livro.
Não quero vituperar ou escarmentar ninguém. Ao contrário, o primeiro mea culpadeve partir dos escritores brasileiros. Como abandonamos um personagem tão complexo e tão fascinante? Nem sequer fizemos dele um tema para romances ou contos!
Ele foi abandonado no xadrez das narrativas, isto é, por nós, ficionistas, também. Não deixemos que se repita o que houve com Antônio Conselheiro, que precisou aguardar a vinda de Mário Vargas Llosa para decifrá-lo no romance A Guerra do Fim do Mundo.
*Deonísio da SilvaDiretor do Instituto da Palavra & ProfessorTitular Visitante da Universidade Estácio de Sá