Manoel Ventura, O Globo
Mais de cinco anos depois de a ex-presidente Dilma Rousseff intervir no setor elétrico para reduzir a conta de luz em 20% - queda que foi anulada por aumentos que ultrapassaram 50% em 2015 -, um esqueleto do setor elétrico começa a ganhar um novo corpo. O projeto de lei enviado ao Congresso pelo presidente Michel Temer, no último dia 22, para privatizar a Eletrobras também mexe na forma como o consumidor pagará, na conta de luz, uma indenização multibilionária às transmissoras de energia elétrica. E o cliente pode ter que arcar com essa fatura por 30 anos.
O imbróglio começou com a publicação da medida provisória 579, em 2012, que tinha o objetivo de reduzir a conta de luz. Ela previa que as concessões de geradoras e transmissoras de energia teriam seu contrato renovado antecipadamente, mas as empresas receberiam o pagamento de indenizações por investimentos efetuados e que não foram devidamente compensados (amortizados). Os contratos seriam renovados e condicionados a receitas menores das empresas.
O pagamento das geradoras ocorreu em seguida, com recursos disponíveis em fundos públicos. Já o pagamento das transmissoras de energia prometido na época foi arrastado até 2017 e se tornou uma novela.
NOVO ÍNDICE DE CORREÇÃO
Depois de um longo impasse, ficou definido o pagamento parcelado em oito anos. A conta foi repassada às tarifas de energia, sendo responsável por um aumento médio de 6,86% nas contas do ano passado. Os grandes consumidores industriais conseguiram decisões na Justiça contra o aumento e reverteram alguns pontos da portaria. A atual equipe do Ministério de Minas e Energia começou a discutir, então, uma forma de resolver esse impasse.
A proposta enviada ao Congresso este mês dilui o pagamento da indenização por um prazo bem mais longo que oito anos: por três décadas. E faz uma mudança crucial na forma como a dívida assumida pelo governo e repassada aos consumidores é corrigida. No lugar do chamado “custo de capital próprio” entra uma taxa de remuneração definida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Na prática, isso significa trocar um índice de dois dígitos por algo entre 7% e 9%.
Inicialmente, a mudança valerá apenas para transmissoras de empresas subsidiárias da Eletrobras (Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul). A intenção do governo, no entanto, é permitir a adesão de outras empresas, como Cemig, Cteep e CEEE. No total, a conta chega hoje a R$ 62 bilhões. Ela é subdividida em duas rubricas. A maior e mais polêmica parte diz respeito à chamada “remuneração”, que são os juros que compensarão o valor que não foi pago às empresas entre 2013 e 2016. Sozinha, essa fatura chega a R$ 35 bilhões.
A pedido do Ministério de Minas e Energia, a Aneel fez simulações considerando que todas as empresas de transmissão com ativos a serem indenizados venham a aderir às novas regras. Num primeiro momento, o cálculo é que a mudança representará uma redução média nas contas de luz em torno de 1,85%, disse uma fonte que participou da elaboração dos cálculos. Essa redução, no entanto, valeria apenas pelos primeiros oito anos de pagamento. Depois, a conta volta a subir - mas em patamares bem menores que os registrados atualmente.
O valor do reajuste que será efetivamente pago pelo consumidor, porém, depende de outras variáveis que afetam a conta de luz - como subsídios, custo de geração de energia e comportamento do dólar, entre outros - e é definido anualmente de acordo com cada distribuidora.
- Reduz a conta na largada, mas o impacto da indenização será sentido pelos próximos 30 anos. O consumidor vai sentir menos, mas vai sentir por muito tempo - disse uma fonte no governo.
Por outro lado, como o prazo do pagamento das indenizações será estendido, o custo financeiro (ou os juros) sobe de R$ 35 bilhões em oito anos para R$ 67 bilhões em 30 anos, mesmo com um percentual de correção mais baixo.
A Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia (Abrace), que conseguiu na Justiça decisões contra o aumento de tarifas provocado pelas indenizações às transmissoras, elogiou a nova solução.
- Não resolve o problema como um todo, mas é uma iniciativa positiva para reduzir os litígios - disse o presidente da Abrace, Edvaldo Santana.
TARIFA VIVE MONTANHA-RUSSA DESDE 2012
O presidente da Associação Brasileira das Empresas de Transmissão de Energia Elétrica (Abrate), Mário Miranda, disse que a entidade ainda está avaliando as mudanças propostas pelo governo, mas demonstrou preocupação com a capacidade de as empresas manterem investimentos — já que a receita anual será menor.
- Nós estamos vendo a simulação do impacto da mudança no índice e no prazo. A primeira consequência é a perda da capacidade das obras de manutenção e de melhorias. Existe uma preocupação porque as empresas já tinham feito planos de negócio considerando o prazo de oito anos. Se muda o prazo, o dinheiro anual é menor - afirmou.
Para o analista de mercado da Safira Energia, Lucas Rodrigues, caso a mudança seja confirmada, o consumidor sentirá menos o efeito da indenização:
- Para o lado do consumidor, tira o impacto do aumento nas tarifas de transmissão, mas ele pagará por muito mais tempo. De imediato, os aumentos serão menores.
O governo desenhou esse novo arranjo para a indenização às transmissoras como parte da privatização da Eletrobras. Um dos objetivos é minimizar os impactos tarifários decorrentes da mudança nos contratos de algumas usinas hidrelétricas da estatal - também parte do processo de desestatização. Como o assunto foi fortemente judicializado, o Executivo também quer evitar a formação de um imbróglio ainda maior.
O projeto de lei com as regras para a privatização da Eletrobras será analisado (e pode ser alterado) por deputados e senadores. Só depois disso, e após a sanção presidencial, é que as novas regras passam a valer.
Desde que o governo decidiu interferir no setor elétrico, em 2012, a conta de luz tem vivido uma montanha-russa. Em 2013, a energia teve queda de 15,66%, alívio que foi logo compensado por um aumento de 17,06% em 2014 e de 51% em 2015. Em 2016, houve queda de 10,66%, segundo dados do IBGE. No ano passado, a alta foi de 10,35%.