segunda-feira, 22 de maio de 2017

"A 'Cosa Nostra' e as nossas coisas", por Clóvis Rossi

Gerard Fouet/AFP
O juiz italiano Giovanni Falcone em foto de 1986
O juiz italiano Giovanni Falcone em foto de 1986


Folha de São Paulo

A Itália lembrará nesta terça-feira (23) o 25º aniversário do assassinato do juiz Giovanni Falcone, então o principal responsável pela chamada Operação Mãos Limpas, parente muito mais encorpado da Lava Jato brasileira.

É, pois, um bom momento para paralelismos, embora comparar países tão diferentes como Brasil e Itália seja sempre uma operação arriscada.

Primeira comparação: Falcone era tão odiado pela máfia e pelos líderes políticos a ela associados como o é, hoje, o brasileiro Sérgio Moro.

Importante diferença, a favor do Brasil: a Cosa Nostra, um dos principais braços da máfia italiana, tinha um poder de fogo extraordinário, superior até ao do crime organizado no Brasil.

Como o crime organizado não está entre os investigados pela Lava Jato, dá para acreditar - e torcer - para que Moro não tenha o mesmo destino de Falcone.

O juiz italiano foi alcançado, no carro que dirigia, por uma explosão tão formidável que acabou registrada pelos sensores do Instituto de Geofísica e Vulcanologia do Monte Erice (Palermo, sul da Itália).

Dois meses depois, um de seus parceiros na investigação, Paolo Borsellino, foi igualmente assassinado.

Outra potencial diferença, esta contra o Brasil: os juízes italianos formaram uma espécie de "pool", sistema pelo qual todos estavam informados de todos os detalhes da investigação. Sabiam que corriam riscos e, por isso, armaram um esquema que permitiria que a operação continuasse, mesmo que um ou mais de um desaparecesse.

Coincidência importante: o nome original da "Mani Pulite" italiana era "Tangentopoli" ou Cidade da Propina. Os depoimentos dos executivos das empreiteiras e da JBS permitem que se chame o Brasil de "País da Propina".

Aliás, é curioso que o primeiro impulso para a investigação italiana tenha sido a prisão do mafioso Tommaso Buscetta, que se tornou o primeiro delator premiado. Onde é que Buscetta foi preso? No Brasil, claro.

Mais um paralelismo: há no Brasil inúmeras declarações de advogados dos acusados e dos envolvidos na Lava Jato criticando as prisões preventivas. Na Itália, também: "Os magistrados italianos abusavam das prisões preventivas para extorquir confissões dos interrogados".

Autor da frase? Silvio Berlusconi, que não é exatamente um "mãos limpas", mas que acabou sendo o beneficiário da operação.

Mais uma potencial coincidência, a ser confirmada: a "Mãos Limpas" dinamitou o sistema partidário italiano. Sumiram do mapa ou perderam completamente importância os partidos que haviam sido dominantes na chamada "Primeira República" (1948/1994), aliás ela própria acabada então.

A Democracia Cristã, que governou a maior parte do tempo desde o fim da guerra em 1945, sozinha ou em coligação, hoje é um partido nanico. Sumiu o Partido Socialista Italiano, igualmente histórico.

Até o Partido Comunista Italiano é, hoje, uma sombra do que havia sido o mais poderoso partido comunista do Ocidente até então, embora fosse oposição ao sistema imperante na "Primeira República".

Na "Nova República" brasileira, supostamente estabelecida ao fim da ditadura, em 1985, só a propina da JBS beneficiou 28 partidos, que é praticamente o número de partidos com representação no Parlamento, se é verdadeira a delação dos executivos da empresa.

Se vão desaparecer ou não, cabe ao eleitor decidir já no próximo ano (ou antes se houver uma eleição direta antecipada).

E, aí, uma observação sobre "Mãos Limpas" e Lava Jato: há quem diga que a Lava Jato acabará do mesmo modo que sua congênere italiana, que teria dado margem à emergência de Silvio Berlusconi, não menos corrupto do que os políticos que a "Mãos Limpas" devorou.

Pode ser, mas é preciso ter claro duas coisas: primeiro, Berlusconi só ascendeu porque os outros partidos se desmoralizaram e ele não era político e, sim, empresário.

Atenção, pois, não basta se dizer não político ou antipolítico para ser limpo.

Segundo, mesmo com Berlusconi no centro da política italiana durante muito tempo, a Itália de hoje é menos suja do que há 25 anos, a Cosa Nostra perdeu poder e juízes não são mais assassinados, por mais que outros braços da máfia continuem operando.

Ou posto de outra forma: não é porque a corrupção não pode ser eliminada, inerente que é à condição humana, que se deve atacar a Lava Jato. O fato inconteste de que executivos confessem crimes e até devolvam dinheiro roubado é uma prova definitiva de que o caminho está correto.

Na verdade, falta ir mais fundo: a "Mãos Limpas" expediu 2.993 mandados de prisão; 6.059 pessoas estiveram sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido chefes do governo.

Vê-se, pois, que a Lava Jato lavou muito pouco até agora.

PS - 1 - Quem quiser um relato minucioso da "Mãos Limpas", procure o texto em italiano na Wikipedia.

PS -2 - O mandante do assassinato de Falcone, o mafioso Salvatore Totò Riina, "Il Capo dei tutti Capi" (o chefão de todos os chefões), militante da Cosa Nostra desde os 16 anos, foi preso.