quarta-feira, 1 de julho de 2015

"Lógica torturada", Editorial da Folha de São Paulo

Antipatizar com delatores é uma questão pessoal, mas Dilma Rousseff (PT), na condição de presidente da República, tem o dever legal de respeitar um instituto admitido pela legislação brasileira –a norma mais recente sobre o tema, aliás, foi sancionada pela própria petista em 2013.

Já não seria pouco, mas Dilma não se limitou a quebrar a liturgia do cargo e a demonstrar incoerência. Procurando se esquivar de acusações feitas pelo empreiteiro Ricardo Pessoa, a presidente desmereceu companheiros do passado, misturou democracia com ditadura e atacou um mecanismo de defesa que auxilia as investigações.

Em Nova York, ao comentar irregularidades que Pessoa atribuiu ao financiamento de sua campanha à reeleição, a petista afirmou: "Não respeito delator, até porque estive presa na ditadura militar e sei o que é. Tentaram me transformar numa delatora (...) e garanto que resisti bravamente".

Dilma pode ter suportado a dor das sevícias; outros tantos sucumbiram. Merecem o desprezo da presidente? Talvez ela tenha se deixado trair, ainda hoje, pela "mitologia heroica" que, como descreve o jornalista Elio Gaspari, era compartilhada por vítimas e algozes.

No livro "A Ditadura Escancarada", Gaspari ainda lembra algo de que Dilma parece ter-se esquecido: a tortura surge como opção pelo "fato de que ela funciona. O preso não quer falar, apanha e fala".

Isso nada revela sobre o caráter do torturado, mas diz muito acerca de governos que aceitam essa desumanidade: são regimes ditatoriais que ignoram o primado da lei e mandam às favas princípios caros às democracias, entre os quais está o devido processo legal.

Embora advogados de envolvidos na Operação Lava Jato apontem abusos nas prisões, não se tem notícia de violência física ou supressão do direito de defesa. Não se confundem com ruptura institucional os eventuais exageros processuais –mesmo porque estes têm sido debatidos nas mais diversas instâncias competentes.

Também têm sido debatidas nos foros apropriados as informações oferecidas por quem buscou um acordo de delação premiada em troca de redução da pena. Como Dilma Rousseff bem sabe, a eficácia da colaboração será levada em conta na concessão do benefício.

Se Ricardo Pessoa mentiu ao dizer que pagou propina no esquema da Petrobras ou ao afirmar que deu dinheiro à campanha de Dilma por medo de arruinar negócios com a estatal, a presidente pode ficar tranquila: ele perderá a vantagem processual e suas acusações não levarão a nada, pois ninguém há de ser condenado apenas com base na manifestação do delator.

Isso é o que garante a lei –a mesma lei que Dilma saudou durante as eleições e que agora, cada vez mais isolada, pretende desacreditar.