As forças ocultas de Brasília se unem para tentar empurrar um projeto de redução das penas aos presos políticos, mas que mantenha Jair Bolsonaro sufocado e impedido de atuar nas eleições
D esde a semana passada, uma pergunta permanece sem resposta na cabeça de centenas de milhares de brasileiros: por que o Projeto de Lei da anistia empacou no Congresso Nacional? E ainda: onde estão os 311 deputados que deram aval para que ele fosse votado em regime de urgência — ou seja, era algo para ontem?
Se a política que se respira nos corredores do Congresso fosse uma ciência exata, a resposta seria simples: a esquerda, que sustenta o governo Lula da Silva, não quer aprovar a anistia. Ocorre que essa conta não fecha: a base lulista é frágil e não tem votos sequer para emplacar um projeto de interesse do presidente. O bloco do PT e seus satélites nanicos reúne 80 cadeiras, que chegam a 130 com o apoio de partidos como PSB, PDT e mais alguns votos no varejo. Portanto, a conclusão óbvia seria: a anistia tem número suficiente.
Para deixar a cabeça do eleitor ainda mais confusa, outro dado importante é que o Regimento Interno facilita a aprovação de projetos de lei simples, que não exigem quórum qualificado, como uma emenda constitucional — esta requer o mínimo de 308 votos, em dois turnos, no Plenário. Para avançar com um projeto de lei, basta ter metade mais um dos presentes na sessão — por exemplo, com 400 deputados dentro do Plenário, 201 votos resolvem. Isso também explica por que a oposição comemorou tanto a aprovação da urgência para votar a anistia na semana passada — urgência exige o mínimo de 257 votos. Novamente, qual a conclusão? É mais fácil aprovar a anistia do que foi vencer a batalha para colocá-la em regime de urgência.
Então, se agora resta a etapa mais fácil, por que o país não pode dormir numa terça ou quarta-feira (dias de quórum cheio) festejando a aprovação do projeto? É aqui que entra um sujeito oculto, que muitos políticos e a velha imprensa buscam descredenciar, chamado “sistema” — a engrenagem do poder. Foi esse sistema que colocou seus operadores em ação, menos de 24 horas após a aprovação da urgência da anistia. Logo depois, o sistema anunciou que ela morreu na praia. O assunto, de fato, murchou nesta semana e transmitir a ideia de que ela é inconstitucional é parte do plano de sabotagem.
Deputado Paulinho da Força | Foto: Lula Marques/Agência Brasil
Aos fatos: no dia seguinte à votação, o presidente da Câmara, Hugo Motta, escalou o deputado Paulinho da Força para ser o relator da matéria mais importante do país. Paulinho ficou 13 anos seguidos na Câmara até ser condenado, em 2020, a mais de dez anos de prisão pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), à época com outra formação. Ele foi acusado de participar do desvio de R$ 350 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Três anos depois, em 2023, o ministro Alexandre de Moraes utilizou um recurso chamado “embargo declaratório” para reverter a condenação no plenário. Esse tipo de recurso não tem essa finalidade: os advogados usam para esclarecer algum trecho confuso da sentença. Até hoje, juristas não entendem o malabarismo de Moraes para reverter um julgamento com essa ferramenta — algo feito por meio de embargo infringente. Desde então, a relação entre Paulinho e Moraes é assunto nos corredores da capital federal.
Em novembro de 2023, Paulinho conseguiu reassumir o posto de deputado federal depois da cassação pela Justiça Eleitoral de Marcelo Lima, do PSB, de quem era suplente. Com 64 mil votos nas urnas, ele é líder de uma central sindical decadente, que rivaliza com a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Não tem formação em Direito nem é lembrado pelo saber jurídico. Não há registros de um discurso histórico na tribuna em quase duas décadas. Mas, naquele que pode ser o seu último ano na Câmara, o deputado tem muitas contas a pagar.
Tão logo foi escolhido a dedo para a missão, Paulinho se reuniu com o ex-presidente Michel Temer, responsável por enviar Alexandre de Moraes ao STF, e o também deputado Aécio Neves, que, assim como o relator, não eram vistos em Brasília há anos. Aécio também tem uma fatura a acertar com a Corte: ele foi flagrado em conversas pedindo propina ao empresário Joesley Batista na época da Lava Jato. Chegou a ser afastado do Senado e só não perdeu o mandato por um acordo de bastidores, que o obrigou a sair de cena e voltar para a Câmara sem ser notado por dois mandatos.
O tucano não só reapareceu na TV, como tem conduzido as entrevistas ao lado do relator. Afinal, por que resgataram Aécio? Desde o vazamento de áudios da Lava Jato, que por muito pouco não o aposentaram, foi exposta sua amizade com o decano do STF, Gilmar Mendes. E o ministro decidiu negociar algo com o Congresso para tentar abafar as manifestações da direita nas ruas à medida que o calendário eleitoral se aproxima.
Foi então que surgiu a proposta indecente do “Projeto de Lei da Dosimetria”. Embora presuma-se que a autoria seja de Gilmar Mendes e Michel Temer, não se sabe a paternidade real do monstrengo jurídico. O texto prevê a redução de 11 anos nas penas dos envolvidos no tumulto de 8 de janeiro de 2023, por meio de alteração do Código Penal e de um dispositivo que impede a sobreposição de penas para crimes parecidos. O resultado seria a liberdade para praticamente todos, inclusive os que estão no exterior. Atualmente, há 144 pessoas em penitenciárias, 44 em prisão domiciliar e 500 consideradas foragidas (no exterior ou sem rastreamento da tornozeleira).
Uma das raras exceções é o ex-presidente Jair Bolsonaro. Condenado a mais de 27 anos de prisão, ele passaria um ano e sete meses em regime domiciliar por causa de problemas de saúde, usando como referência o benefício dado a outro ex-presidente, Fernando Collor de Melo. Bolsonaro, porém, permaneceria impedido de concorrer ou fazer campanha para aliados em 2026. A proposta colocada na mesa é claríssima: o sistema não quer Bolsonaro no jogo eleitoral.
Paulinho e Aécio percorreram gabinetes de líderes partidários nesta semana. Também houve uma reunião aberta, com a presença de familiares e advogados dos presos políticos de 8 de janeiro. O relator disse que entregará seu texto a Hugo Motta na próxima terça-feira para votação no plenário. Não há nenhum indicativo de que tenha mudado de ideia. O PL, principal partido de oposição, não topa o texto de Paulinho. Isolado, contudo, não tem votos suficientes para reverter o cenário.
Derrubar o relator, como alguns chegaram a sugerir nos microfones, é uma decisão particular de Hugo Motta. Trata-se de um beco sem saída? Não. Porque aí entra a política e, historicamente, sempre foi assim em grandes votações — como a própria Lei 6.683, a simbólica Anistia de 1979, que saiu do Congresso como “ampla, geral e irrestrita”.
Alguns deputados mais experientes argumentam que seria possível redigir outro parecer, chamado de “substitutivo” no jargão do Congresso, com caráter de anistia e não de dosimetria. Restaria o trabalho de convencer, na tribuna, a maioria da Casa de que esse texto é melhor. Detalhe: a votação ocorre em turno único, ou seja, se passar em votação acelerada, segue diretamente para o Senado. Outra possibilidade muito comum é tentar remendar o próprio texto de Paulinho, depois de aprovado, com os chamados “destaques” — ajustes pontuais, mas decisivos. Nesse caso, não seria uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, mas algo melhor do que o texto de Paulinho.
É impossível fazer previsões quando se trata do Congresso Nacional. Brasília sempre encontra seus próprios caminhos. As coisas podem mudar muito depressa, sobretudo quando entra em cena outro sujeito, aquele que é capaz de escrever a História: o povo. A Câmara dos Deputados é conhecida, desde que foi erguida no centro da Praça dos Três Poderes, como a Casa do Povo. É hora de o povo dizer aos deputados o que deve acontecer dentro da sua casa.
Sílvio Navarro - Revista Oeste