sexta-feira, 26 de setembro de 2025

'Hora de despiorar', por Eugênio Esber

O Brasil foi, ao longo do tempo, parindo uma juristocracia sem freios, imune aos códigos éticos e morais que regem a magistratura e, fundamentalmente, sem compromisso com a lei

O ministro Gilmar Mendes na sessão da Segunda Turma por videoconferência | Foto: Nelson Jr/STF 


S ob o título autoexplicativo de “Luxus und Korruption”, o tradicional jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, o NZZ, resolveu escandalizar seus leitores lançando mão, como reza a boa técnica jornalística, de uma provocação: “Imagine o seguinte cenário na Suíça: um juiz do Tribunal Federal convida você, uma vez por ano, para um grande encontro de juristas em um luxuoso resort no Caribe. Entre os convidados estão não apenas metade do tribunal e várias dezenas de advogados influentes, mas também políticos, membros do governo e altos funcionários públicos. O evento, que dura vários dias, é patrocinado por empresas que são clientes dos advogados ou cujos casos estão em julgamento no tribunal. É exatamente isso que acontece todos os anos no Brasil, quando Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), convida pessoas para um evento em Portugal. Mendes é o decano do Tribunal, ou seja, o juiz mais antigo em atividade.” 

Na reportagem que eviscerou os abusos de poder, luxos e nepotismos da elite do Poder Judiciário brasileiro, o correspondente deixou seus leitores ainda mais aturdidos com a informação de que o evento em questão, apelidado de Gilmarpalooza pela gaiatice brasileira, por ser promovido por uma faculdade de Direito pertencente à família de Gilmar Mendes, já se realizava havia 12 anos. Em síntese, a banalização de um absurdo — mais um, diga-se — a demonstrar como o Brasil foi, ao longo do tempo, parindo uma juristocracia sem freios, imune aos códigos éticos e morais que regem a magistratura e, fundamentalmente, sem compromisso com a lei. 

Nem com a lei e nem mesmo com a própria jurisprudência, o que é particularmente grave para quem vive e faz negócios, assina contratos ou tenta pautar sua conduta observando a bússola legal e constitucional, mas se depara com uma biruta de aeroporto que tremula nas mais diferentes direções, conforme os ventos da conveniência política, ou de graúdos interesses privados, que sopram do Supremo Tribunal Federal. 

Quem lê em inglês, ou sabe se socorrer dos tradutores do Google, tem conseguido espiar, por sobre os muros erguidos pela imprensa convencional, os numerosos exemplos de abusos cometidos pela Suprema Corte brasileira que repercutem em prestigiados jornais de outros países. Um rol que abrange linhas editoriais tão variadas quanto o New York Times, referência dos que se dizem “progressistas”, quanto o Wall Street Journal, que tem a moderação própria dos grandes tomadores de decisão na esfera dos investimentos. 

O Journal, pela ótica de sua editora de temas latino-americanos, Mary Anastasia O’Grady, chegou a fazer uma afirmação gravíssima — a de que um golpe de Estado ocorreu no Brasil por obra não de generais e sim da mais alta Corte brasileira, a partir de 2019. Publicado em agosto, antes do julgamento de Bolsonaro e membros do seu governo pela Primeira Turma do STF, o texto de O’Grady acabou ganhando uma inesperada chancela institucional dentro do próprio Tribunal que ela, especialista em América Latina, acusa de lawfare — termo em inglês que designa o uso de processos judiciais como arma de perseguição política.


O decano no STF, Gilmar Mendes, durante o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, na Primeira Turma do Tribunal – 11/9/2025 | Foto: Gustavo Moreno/STF 


Quem lhe deu razão e respaldo técnico foi o ministro Luiz Fux, único juiz de direito a ingressar na profissão por concurso público, e com a láurea de ter obtido o primeiro lugar no certame. Em voto que desconcertou e enfureceu seus colegas, Fux demoliu as acusações contra Bolsonaro e grande parte dos réus, apontando a inconsistência de cada enquadramento legal e a fragilidade das provas apresentadas por um Ministério Público que, à vista de todos, deixou-se capturar pelo instinto seletivamente punitivista da Corte. Uma vez traduzido para outros idiomas, o voto de Fux tende a oferecer às melhores universidades do mundo um leading case sobre o embate do século — o direito contra a força, ou, em outros termos, o cidadão frente ao Estado. O voto solitário de Fux pela absolvição, na Ação Penal 2668, passa à história porque, em algum momento, dará fundamentos sólidos para a anulação de um julgamento que, na verdade, pretendeu sentenciar um país inteiro. 

No país sentenciado, sob aplausos de um oportunismo de ocasião, o indivíduo comum pode ser julgado por um tribunal de exceção que não lhe dá direito a apelar para outras instâncias de justiça, uma garantia aceita universalmente e consagrada, explicitamente, pela legislação brasileira, com o princípio do “juiz natural”. Abrem-se, também, precedentes para juízes abrirem processos de ofício, como fez o ministro Dias Toffoli em 2019 com o eterno “Inquérito das Fake News”; acumularem funções incompatíveis, como a de investigar, denunciar e julgar inclusive os recursos contra suas próprias decisões, abominação exercida pelo ministro Alexandre de Moraes; escolherem policiais que atuarão nas diligências, outra especialidade de Moraes; anteciparem seus prováveis vereditos por meio de declarações à imprensa ou postagens em rede social; julgarem casos em que são ou alegam ser vítimas; e muitas outras aberrações fartamente documentadas por Oeste e veículos independentes.


O mais trágico no cenário brasileiro é que o chamado sistema de freios e contrapesos entre os Poderes da República está rompido. Lula, que segundo declaração de Gilmar Mendes deve sua eleição ao STF, é refém da ala dominante da Suprema Corte. Não é diferente a situação de deputados e senadores, hoje em posição subalterna. Grande parte dos parlamentares responde — ou poderá vir a responder — a processos no Supremo, e o ritmo de tramitação pode ser o de uma lesma, como sucedeu com o senador Renan Calheiros, ou de um bólido — vide Bolsonaro e aliados.


Não é só o ritmo que conta, claro. O desfecho é variável crítica, para o mal ou para o bem. O deputado Paulinho da Força, por exemplo, escolhido como relator do projeto de anistia, tem como trunfo político uma longa amizade com Alexandre de Moraes, circunstância decisiva para que, em 2023, o STF anulasse uma decisão da Primeira Turma da Corte que o havia condenado, três anos antes, a uma pena superior a dez anos de prisão por lavagem de dinheiro e outros crimes. Sumido nos últimos anos, Paulinho emergiu para, em atendimento à vontade de Moraes e de outros ministros, enterrar o projeto de anistia. 

Quem o escolheu foi o presidente da Câmara, Hugo Mota — cuja família é alvo de investigações que podem andar ou não, a depender de sua postura. Motta tem andado na linha. David Alcolumbre, presidente do Senado, mais ainda — só ele pode abrir um processo de impeachment contra ministros da Suprema Corte, e já disse que não o fará.


O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB) | Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados

Há, sempre, naturalmente, a esperança de que o Senado passe por uma drástica mudança em seu perfil com a renovação de dois terços das 81 cadeiras em 2026, mas até mesmo a via eleitoral está obstruída pela forte interferência do Supremo Tribunal Federal. O pavor de ver a formação de uma sólida maioria de conservadores com a faca nos dentes assumindo o controle da casa alta do parlamento já mobiliza o braço de atuação política do Supremo, que continuará sob o comando do decano Gilmar Mendes, embora a presidência da instituição passe para o ministro Edson Fachin, de perfil oposto ao exibicionismo de Luís Roberto Barroso. 

É difícil imaginar que o Tribunal Superior Eleitoral, sob a presidência de Kassio Nunes Marques, e agora sob a mira do governo norte-americano, reedite as truculências e ilegalidades que Alexandre de Moraes praticou contra os adversários de Lula na eleição de 2022. Mas, de outra parte, a usina de processos judiciais contra aliados de Bolsonaro e toda a sua família não permite uma aposta em eleições livres e no fim do que Donald Trump costuma chamar de “caça às bruxas”. A nominata de pessoas presas, exiladas ou sob investigação, entre elas campeões de votos como Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli, mostra que o regime PT-STF está disposto a jogar duro. 

Não há, porém, razão para ceder ao pessimismo. A geopolítica, que em 1989 muitos julgaram tratar-se de disciplina superada (Francis Fukuyama, O Fim da História), regressou ao palco do debate mundial. E nesta era em que a globalização retrocede e o Estado-Nação, queira-se ou não, readquire sentido, a América Latina, particularmente o Brasil, passa a ter um papel relevante para os Estados Unidos, farol do ordenamento jurídico e constitucional brasileiro. Para além das análises juvenis sobre esquerda e direita, democratas e republicanos, and so on, o governo Trump e a mídia norte-americana demonstram uma atenção crescente ao que se passa no Brasil. 

Barroso pode repetir o quanto quiser engodos como o de que não há censura nem perseguição política no Brasil, ou de que o País vive sob os cânones do “Estado Democrático de Direito”, mas a crueza dos fatos indica o contrário do que suas aveludadas declarações sustentam. A anulação e, pior, a destruição em escala industrial das provas coletadas pela Lava Jato, a maior operação anticorrupção do mundo,  são, parafraseando Roberto Carlos, “coisas muito grandes para esquecer”.


O ministro relator Alexandre de Moraes, na sessão do STF de julgamento de Bolsonaro e mais sete réus da suposta trama golpista - Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil 


O enriquecimento da família do ministro Alexandre de Moraes, como se soube ao longo dos últimos dias em face da aplicação daLei Magnitsky pelo governo norte-americano, é um caso que instala na sala de estar do Brasil um estridente debate sobre conflito de interesses na mais alta instância do Judiciário brasileiro. Há outros ministros, além de Moraes, beneficiando-se da decisão que o STF tomou em 2023, em proveito próprio e de qualquer outro juiz brasileiro. Por 7 a 4, suas excelências removeram um impedimento legal vigente até então e decidiram que juízes podem, sim, julgar casos de interesse de escritórios de advocacia de parentes ou cônjuges. Se você tem um escritório jurídico, como concorrerá com bancas supremas? E sua empresa, como pretende ingressar na seara judicial — contratando um serviço jurídico ou de relacionamento? Perguntas retóricas, é claro.

Ex-corregedora do Conselho Nacional de Justiça, Eliana Calmon esfregou no nariz dos desatentos uma explicação terrivelmente realista para o que está a ocorrer, como diz Gilmar com seu trejeito lusitano. “Naturalmente”, afirmou ela ao site Antagonista, “existe uma divisão familiar. Ou seja, a mulher fica com o poder econômico — os escritórios de advocacia. E o marido fica com o poder político dentro do Poder Judiciário. E dessa forma eles ganham muito, e têm o poder na mão. Isso é, realmente, um acasalamento perfeito! E que rende muito dinheiro.” 

A realidade é que chegamos ao fundo do poço, aquele ponto-limite que encoraja a reação interna da parte sadia da sociedade, no plano interno. E que, fora de nossas fronteiras, suscita um senso de urgência na maior potência da região, que não quer, naturalmente, ver um regime de opressão transformar o Brasil em uma versão maior e mais imbatível que a já longeva narcoditadura venezuelana. 

Anime-se. Como se lia em tradicional jornal brasileiro, o Brasil há de “despiorar”

Eugênio Esber - Revista Oeste