sábado, 20 de setembro de 2025

'A inversão revolucionária', por Flávio Gordon

O assassino de Charlie Kirk, que acabara de cometer o ato mais extremo a que o ódio político pode levar um ser humano, atribuía o ódio justamente à sua vítima, um notório pacifista


Tyler Robinson, assassino do ativista Charlie Kirk | Foto: Reprodução/FBI 


“E u já não aguentava mais o ódio dele. Tem ódio que não dá para negociar.” Foi com essas palavras que Tyler Robinson, o assassino de Charles Kirk, explicou a motivação do crime a um colega de quarto. Ou seja, o sujeito que acabara de cometer o ato mais extremo a que o ódio político pode levar um ser humano — o homicídio — atribuía o ódio justamente à sua vítima, um notório pacifista, apologista e praticante do diálogo entre os diferentes. Nenhum exemplo poderia ilustrar melhor a inversão típica da forma mentis revolucionária. 

Charles Kirk (mais conhecido como Charlie), fundador da Turning Point USA, construiu sua carreira sobre a nobre e quase inocente crença de que o confronto civilizado de ideias ainda é possível. Seus eventos eram debates abertos, nos quais universitários de extremaesquerda tinham espaço para confrontá-lo diante de plateias lotadas — algo impensável para qualquer militante progressista que não disponha de plateia previamente treinada para aplaudir slogans. E foi justamente essa abertura intelectual que lhe valeu o ódio dos “tolerantes”. Pois, para a mentalidade revolucionária esquerdista, um adversário que não se encaixa no papel de vilão é simplesmente intolerável, pois ameaça desmontar, por sua simples existência, a caricatura indispensável à narrativa dos justiceiros. 


Charlie Kirk desafiou a esquerda com debates abertos e se tornou alvo do ódio dos “tolerantes” | Foto: Divulgação/X


Em suas análises sobre a “mentalidade revolucionária”, Olavo de Carvalho observou que a inversão entre sujeito e objeto — bem como outras inversões lógicas — é traço permanente de todas as manifestações revolucionárias, desde os milenarismos medievais até os totalitarismos modernos. Em suas palavras: 

“’Revolução’ significa precisamente um giro, uma inversão de posições. O tema do ‘mundo às avessas’, que invadiu o teatro e as artes plásticas na entrada da modernidade impregnou-se tão profundamente na mentalidade revolucionária que acabou por se tornar um reflexo inconsciente, consagrando-se por fim como o método de pensamento essencial — e, na verdade, único — da intelectualidade ativista e dos políticos de esquerda. Não é de espantar, pois, que aqueles que se deixam seduzir em mais ou em menos pela ideia revolucionária, nem sempre sendo capazes de virar o mundo de pernas para o ar como desejariam, façam ao menos a revolução nas suas próprias cabeças, invertendo as relações lógicas de sujeito e objeto, de afirmação e negação, de anterioridade e posterioridade, e assim por diante, enxergando, portanto, tudo às avessas e só admitindo como verdade o contrário do que os fatos dizem e os documentos atestam”. 

Tipicamente, a inversão revolucionária entre sujeito e objeto transforma-se numa inversão entre vítima e algoz. E essa inversão é o núcleo emocional da mentalidade revolucionária. Os maiores genocidas da história, de Stalin a Pol Pot, sempre se apresentaram como vítimas no exato instante em que mandavam milhões para a morte. Com efeito, a autopiedade revolucionária é o anestésico moral que prepara o espírito para a prática do mal. Ela permite ao perpetrador sentir-se mártir ao mesmo tempo que aperta o gatilho.


Tyler Robinson encarna a inversão revolucionária ao posar de vítima enquanto assume o papel de algoz | Foto: Reprodução


Andrew Lobaczewski, psiquiatra polonês que estudou o fenômeno, chamou de “patocracia” o regime fundado sobre a psicopatia coletiva. Não é apenas que líderes psicopatas cheguem ao poder: é que eles reorganizem a sociedade de modo que sua patologia se torne a norma. Este é o nosso tempo. Robinson, o assassino de Kirk, é o produto previsível desse ambiente. 

Trata-se de um ambiente cultivado — nas salas de aula universitárias, onde professores transformam militância em catequese; nos estúdios de Hollywood, onde o vilão é invariavelmente um homem branco conservador; nas redações de jornais, onde qualquer discordância do consenso progressista é enquadrada como “discurso de ódio”. Foi aí, nessa caldeira de perversões ideológicas, que Robinson aprendeu que eliminar Kirk não era apenas permitido, mas moralmente justificado. Afinal, se a imprensa e a academia repetem diariamente que conservadores são “fascistas” e que fascistas não merecem viver, que conclusão pode tirar um jovem mentalmente instável? Para que o amor reine, é preciso eliminar o ódio. E, no cérebro lavado do assassino, Kirk era o ódio: “Eu não aguentava mais o ódio dele”. 

Mas a verdade é que o jovem e talentoso polemista conservador não odiava ninguém. Basta assistir a seus vídeos: ele é cordial, empático, predisposto ao diálogo com indivíduos de visão diametralmente oposta à sua. Para a esquerda revolucionária, isso é irrelevante. Ela não lida com a realidade. De sua perspectiva, o outro não é um sujeito propriamente humano, mas uma tela na qual se projeta o perturbado mundo interior do revolucionário. Kirk foi a tela em branco na qual o assassino projetou o seu próprio ódio existencial. Num ritual político verdadeiramente diabólico, ele foi o bode expiatório a ser sacrificado em nome do paraíso terreno prometido pela esquerda.


Charlie Kirk se tornou o bode expiatório sobre o qual Tyler Robinson projetou seu ódio existencial | Foto: Reuters/Cheney Orr 


“O ódio cego contra o inimigo cria um impulso forte que quebra as fronteiras naturais das limitações humanas, transformando o soldado em uma eficaz máquina de matar, seletiva e fria. Um povo sem ódio não pode triunfar contra o adversário”, ensinou Che Guevara, o patrono da violência revolucionária. A esquerda nunca escondeu seu apreço por esse motor psíquico. Ela precisa do ódio para sobreviver. O ódio é o cimento que une seus militantes, a força que os impele a prosseguir, mesmo quando a realidade desmente suas utopias. 

O ódio da esquerda é quintessencial, elementar, quase metafísico. André Glucksmann, filósofo francês e ex-maoísta, diagnosticou o fenômeno com precisão: “O ódio precede e predetermina o objeto que fabrica para si mesmo”. O revolucionário não descobre um inimigo. Ele o fabrica. Parodiando Voltaire, se Kirk não existisse, seria preciso inventá-lo. Se não houver fascistas suficientes para justificar a violência, serão chamados de “fascistas” todos os opositores ao projeto revolucionário. 


Essa lógica explica por que crimes como o assassinato de Charlie Kirk tendem a ser relativizados, quando não justificados, pela grande imprensa. O mesmo establishment midiático que faria capas indignadas se o assassinato tivesse como vítima um militante de esquerda, no máximo emite notas mornas de pesar e logo muda de assunto (para não falar dos que celebram abertamente a barbárie). Pelo fato de a vítima ter sido um conservador, a narrativa logo se desloca para culpar a “polarização”, como se o crime fosse responsabilidade difusa de “ambos os lados”. O resultado é a legitimação implícita do ato: afinal, o morto era perigoso, “polarizador”, um problema para a democracia. No fundo, a morte de um “reacionário” é vista como um passo rumo à redenção histórica.


É por isso que silenciar diante de episódios como esse equivale à cumplicidade. O que está em jogo não é apenas preservar a memória de um homem bom, mas a própria possibilidade de convivência civilizada — a grande causa daquele que, num ato de assassinato simbólico complementar ao assassinato físico, a imprensa sicofanta trata por “extremista”. Aceitar que um debatedor seja demonizado até ser morto é aceitar que amanhã qualquer um possa ser a próxima vítima. É aceitar que o espaço público seja dominado pelo medo, pela intimidação e, finalmente, pela força bruta. 

É urgente identificar os responsáveis indiretos pelo crime: as universidades que formam militantes incapazes de conviver com a diferença, a imprensa que escolhe quem merece compaixão e quem merece desprezo, as elites culturais que transformam ódio em produto de consumo. Se não nomearmos o problema, ele continuará crescendo, até que um novo Tyler Robinson encontre o seu próximo alvo. 

A morte de Charlie Kirk é um alerta. Não para “todos os lados”, mas para o lado que ainda acredita na palavra, no argumento e na civilidade. Ou reagimos agora, denunciando a campanha de desumanização que vem preparando o terreno para novos crimes, ou aceitaremos que a cultura do cancelamento se transforme, literal e sangrentamente, em cultura do extermínio.


A morte de Charlie Kirk expõe o risco de a cultura do cancelamento evoluir para uma cultura de extermínio | Foto: Shutterstock 

Flávio Gordon - Revista Oeste