sexta-feira, 19 de setembro de 2025

'Vítimas da Intolerância', por Anderson Scardoelli

 O assassinato de Charlie Kirk é mais um caso de ódio que desumaniza os que ousam criticar a esquerda


Ilustração: Montagem Revista Oeste/A


Charlie Kirk defendia o diálogo e fez disso um propósito de vida. Aos 31 anos, casado, pai de duas crianças, era um conservador assumido. Mas conversava naturalmente com quem dele divergia. À frente da Turning Point, organização sem fins lucrativos criada em 2012, circulou por todo o país, fazendo escalas geralmente em universidades para trocar ideias com a plateia. Com frequência, protagonizou demonstrações de tolerância: debateu com homossexuais, ateus, militantes do partido Democrata e esquerdistas em geral. A bala que encerrou prematuramente a sua trajetória mostrou que a tribo dos que recusam o convívio dos contrários está crescendo em quase todo o planeta. No último dia 10, no momento em que expunha com voz tranquila seus pontos de vista na Universidade de Utah, foi abatido por um tiro no pescoço.


Admirado pelo presidente norte-americano Donald Trump, Kirk se tornou o caso mais recente de uma figura identificada com a direita que acabou assassinada por expor seus pensamentos. O problema, contudo, ultrapassa as fronteiras dos Estados Unidos. Nos últimos anos, por exemplo, dois presidenciáveis foram assassinados na América do Sul. Crítico do narcotráfico, Fernando Villavicencio foi morto com três tiros na cabeça em 9 de agosto de 2023, dez dias antes do primeiro turno da eleição para presidente do Equador. A facção criminosa Los Lobos reivindicou o crime. Neste ano, em meio à campanha presidencial da Colômbia, Miguel Uribe Turbay foi baleado na cabeça durante comício em Bogotá no dia 7 de junho. Internado em estado grave, morreu em 11 de agosto. 

Alvo das críticas de Turbay no decorrer dos últimos anos, o presidente esquerdista Gustavo Petro disse torcer pela sobrevivência da vítima e manifestou sua solidariedade ao agressor. “A vida da vítima — que está em boas mãos e nas quais confiamos — e a vida do assassino, que é um menor de idade, uma criança”, declarou. “As leis e as normas nos obrigam a proteger a criança por ser criança, porque, se não cuidarmos das crianças da pátria, não teremos pátria.” Petro foi guerrilheiro do M‑19, grupo nacionalista de extrema esquerda que atuou no país entre 1970 e 1990. Diferentemente das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que sobreviviam enfurnadas na selva, o M-19 agia nas cidades. 

Casos do gênero não são exclusividade das Américas. Em agosto, num intervalo de 15 dias, foram mortos seis integrantes do partido de direita Alternativa para a Alemanha (AfD na sigla em alemão). Nas eleições regionais de 14 de setembro, a AfD saltou de 5% dos votos em 2020 para cerca de 15%. Os veículos da velha mídia no Brasil registraram o avanço da sigla de “ultradireita” ou “extrema-direita”.


Notícia publicada na Oeste (11/8/2025) | Foto: Reprodução/Oeste

Desumanização da direita 

A AdF pode até ser enquadrada nesses rótulos. O problema é que, na imprensa brasileira, esses intensificadores nunca são utilizados para se referir à esquerda — mesmo quando se trata dos setores mais radicais. A direita, em compensação, sempre é “extrema”, não importa o quão moderada seja. Ao noticiar o assassinato de Kirk, por exemplo, o portal G1, do Grupo Globo, publicou a manchete: “Charles Kirk, ativista da extrema direita dos Estados Unidos, é baleado em universidade”.


Notícia publicada no G1 (10/9/2025) | Foto: Reprodução/G1 


A colunista da Folha Suzana Herculano-Houzel sugeriu que o conservador era como um câncer. Na BandNews FM, o âncora Luiz Megale até condenou o assassinato, mas não se conteve: chamou Kirk de “ser deplorável”, dono de “ideias execráveis” e “ativista intolerante”. Megale ainda teve tempo de lamentar que o homicídio dará “autorização”, nas palavras dele, para Trump adotar as “medidas mais radicais possíveis”. 


Notícia publicada no Folha de S. Paulo (11/9/2025) | Foto: Reprodução/Folha de São Paulo 


A preocupação deveria ser outra. Como explica Marize Schons, doutora em Sociologia e professora em Teoria Política, rótulos como “extrema-direita” e “radicais” reforçam a rejeição ao contraditório. “Não há a desumanização apenas do antagonista político, mas também do eleitor que enxerga nesses políticos pessoas que representam seus interesses”, afirma. “A radicalização elimina os limites para a concretização da tirania”. Para o cientista político João Eigen, a esquerda sempre foi muito mais unida e motivada a cometer crimes políticos: 

“A mentalidade revolucionária já possibilita que os militantes se eximam de participar da moralidade humana normal, pois se acham os arautos de uma sociedade futura de justiça e paz”, observa. “Portanto, não podem ser julgados pela ‘moralidade burguesa’ do tempo presente. Isso os torna cínicos e muito mais propensos a cometer crimes como assassinatos políticos”. O combate ao radicalismo precisa ocorrer por meio do diálogo e do respeito à opinião alheia, lembra o historiador e professor Leandro Karnal. “Devemos debater”, diz, em vídeo divulgado nesta semana em seu perfil no Instagram. “A divergência é boa, típica de sociedades abertas e democráticas. (…) Tenho que estabelecer um limite, que é um limite ético, esse limite é intransponível: jamais desejar a eliminação de alguém que pensa diferente e jamais me alegrar, jamais manifestar júbilo porque alguém de quem eu discordo morreu.”


Apologia ao crime

Na contramão de Karnal, o jornalista e escritor Eduardo Bueno usou as redes sociais para comemorar o assassinato de Charlie Kirk. Conhecido como Peninha, ele aplaudiu o homicídio em um vídeo no 19/09/2025, 13:06 Kirk e outras vítimas da intolerância https://revistaoeste.com/revista/edicao-288/vitimas-da-intolerancia/ 7/16 Instagram — depois derrubado pela plataforma — e disse que os filhos de Kirk vão crescer melhor sem a presença do pai. Celebrar a morte de quem pensa diferente virou hábito para Bueno. Em agosto, ele definiu como “maravilha” a notícia do falecimento do jornalista J. R. Guzzo, fundador e colunista de Oeste. Em julho de 2022, afirmou ao humorista Rafinha Bastos que sua mulher o impediu de atropelar “cinco velhas caquéticas” que participavam de manifestação em Porto Alegre. Em outra entrevista a Rafinha, disse ter festejado a morte de Ronald Reagan e Margaret Thatcher.


Além do cancelamento de eventos, programas de internet e TV, e da demissão do Conselho Editorial do Senado, o escárnio diante da tragédia pode fazer com que Bueno sofra consequências legais. O artigo 287 do Código Penal classifica casos assim como apologia ao crime. A pena é o pagamento de multa, sem valor estipulado por lei, ou prisão de três a seis meses. 

“Manifestações públicas com o propósito deliberado de incentivar e fomentar atos de violência e, no grau máximo, de extermínio de outra pessoa por razões ideológicas ou políticas” configuram apologia ao crime, diz Rafael Valentini, especialista em Direito e Processo Penal. Criticado até pelos próprios seguidores, Bueno publicou um segundo vídeo em que se desculpava pelo que disse, mas reafirmava sua alegria com a morte de Kirk. Sem apoio, restringiu os comentários em seu perfil no Instagram. 

O risco de haver um Kirk brasileiro 

Embora encontre nas redes sociais um campo fértil, o ódio sai da bolha e ultrapassa todos os limites também no Brasil. Em setembro de 2018, o então candidato a presidente Jair Bolsonaro foi esfaqueado por Adélio Bispo, ex-militante do Psol, durante passeata em Juiz de Fora (MG). Bolsonaro sobreviveu, chegou à Presidência da República, mas até hoje sofre as consequências do atentado. Entre idas e vindas de hospitais, passou por cinco cirurgias na região abdominal, área atingida pela facada, e enfrenta até hoje inúmeros problemas colaterais de saúde.

Trump também escapou de uma tentativa de assassinato pouco antes de voltar à Casa Branca. Durante comício na cidade de Butler, na Pensilvânia, em 13 de julho do ano passado, o republicano ficou na mira do atirador, que só não acertou um disparo fatal porque naquele exato momento Trump virou a cabeça para consultar um gráfico — a bala pegou de raspão a orelha direita do político. 

Alertadas pelo assassinato de Kirk, autoridades conservadoras brasileiras passaram a denunciar ameaças de morte. Foi o caso, por exemplo, do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que levou a Polícia Federal a prender Adalto Gaigher Júnior, estudante de ciências biológicas da Universidade Federal do Espírito Santo. “Nikolas, eu vou te matar a tiros”, ameaçara o universitário. Outro deputado federal, Kim Kataguiri (União-SP), e o vereador paulistano Lucas Pavanato (PLSP) afirmam ter passado por problemas semelhantes. “Já recebi mensagens dizendo que eu seria morto no local onde eu estava prestes a discursar”, diz Kataguiri. “Quando uma pessoa precisa usar da violência para tentar te intimidar é porque ela já perdeu o debate”, avalia Pavanato.

Nem mesmo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, escapou da turma do ódio. Depois de ele votar pela absolvição de Bolsonaro no processo da suposta trama golpista, uma estagiária da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que não teve a identidade revelada, acabou dispensada depois de afirmar, no X, que o magistrado “tem que morrer”. 

Primeiro judeu a chegar ao STF, Fux ainda se tornou vítima de antissemitismo. A Confederação Israelita do Brasil classificou o episódio como “alarmante”. 

A direita contra-ataca 

O assassinato de Kirk fez a direita reagir. Campanhas on-line têm exposto mensagens de quem ameaça matar um oponente ou faz chacota com quem é assassinado. O movimento tem dado resultados. Neurocirurgião baseado no Recife, Ricardo Barbosa perdeu o visto norte-americano e o emprego numa clínica como consequência da comemoração pelo homicídio de Kirk.

Outra que perdeu o emprego foi a estilista Zazá Pecego, que trabalhava para a Vogue Brasil, revista publicada pelo Grupo Globo em parceria com a editora norte-americana Condé Nast. Depois da morte do ativista conservador, Zazá escreveu: “Amo quando fascistas morrem agonizando”. 

Além de Kirk, Bolsonaro, Trump, Turbay e tantos outros, a real vítima desses atentados é a democracia. E está cada vez mais evidente de qual lado do espectro político está a intolerância.


 -Anderson Scardoelli - Revista Oeste