O Brasil não merece ver Lula na tribuna em que se viu Osvaldo Aranha
D e novo, Janja decolou rumo aos Estados Unidos uma semana antes de Lula. Mas quem estará à espera do presidente da República em Nova York, para acompanhá-lo na Assembleia Geral da ONU, será a versão 2026 da socióloga Rosângela da Silva. Ao alojar-se no Palácio da Alvorada, a mulher do chefe de governo prometeu “ressignificar o cargo de primeira-dama”. De lá para cá, caprichou no papel da deslumbrada impiedosa com o idioma, a estética e a discrição. O último ano enfim mostrará aos brasileiros a versão ressignificada, decidiu a mulher de Lula. Conforme prometeram os assessores, as primeiras mudanças começaram nessa incursão por território americano.
No desembarque, Janja não repetiu os passos de dança que exibe seja qual for a música. Os estranhos trajes multicoloridos foram substituídos por um modelo menos espalhafatoso. Em vez de alugar a mais cara suíte do hotel 30 estrelas, hospedou-se na residência oficial do embaixador Sérgio Danese, representante permanente do Brasil na ONU. Ainda mais radical foi a guinada na agenda. Visitas a lojas e pontos turísticos em dias úteis foram trocadas por mergulhos em misteriosas profundezas do conhecimento humano. É o que informa a programação divulgada neste 18 de setembro, quinta-feira. Confiram o que fez e fará Janja como representante do Brasil:
Na tarde de quinta-feira, ela participou de uma reunião de trabalho sobre “Transversalização da Conexão de Gênero-Clima para a COP30”. Na sexta, 19, está no “Balanço Ético Global — América do Norte”. Na segunda-feira, refeita pelo descanso do fim de semana, emitirá opiniões sobre dois temas: “Direitos Humanos e Transição Justa” e “Igualdade Racial e Periferias”. Na terça, vai tratar de “Merenda Escolar Regenerativa para as Pessoas e o Planeta”. Na quarta, 24, desfrutará do “Café da Manhã Ministerial para Campeões da Nutrição”. Merece um mês de férias na Costa Amalfitana quem souber o que, afinal, será debatido. Merece uma passagem para Cuba — só de ida — quem tentou resumir em poucas palavras o tema a ser tratado em cada evento.
Absorvida por tantos mistérios, Janja não terá tempo de trocar ideias com o marido sobre o discurso (escrito por Celso Amorim) que abrirá a reunião da Organização das Nações Unidas. Esse privilégio se repete desde 1947, em homenagem à extraordinária competência demonstrada por Osvaldo Aranha ao presidir, no ano anterior, a segunda assembleia geral da ONU. A habilidade do diplomata gaúcho resultou na aprovação do Plano de Partilha da Palestina e na criação do Estado de Israel. O representante do Brasil, aliás, foi uma prova definitiva de que duas figuras aparentemente opostas podem conviver num mesmo corpo. Juntaram-se em Aranha o revolucionário de 1930 e o negociador da paz, o caudilho impaciente e o diplomata sem pressa, o gaúcho de bombachas e o cosmopolita de terno branco. Ele sempre conciliou tantas ambivalências por subordiná-las ao traço mais poderoso de sua personalidade: a paixão visceral pela democracia.
Embaixador Osvaldo Aranha do Brasil, em Los Angeles, EUA (27/8/1935) | Foto: Wikimedia Commons
Em 1937, por exemplo, o grande amigo de Getúlio Vargas se opôs publicamente à decretação do Estado Novo. Em 1942, embaixador em Washington, Aranha estimulou com discrição o poder de pressão da Casa Branca, para neutralizar o fascínio de Getúlio pelo Eixo nazifascista. Em seguida, induziu o ditador a juntar-se aos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Em 1933, quando era ministro da Fazenda do governo provisório, fez um curto diagnóstico que se tornaria sua frase mais famosa: “O Brasil é um deserto de homens e de ideias”.
Equivocou-se. Abaixo apenas de Getúlio, Aranha seria o número 2 da mais brilhante safra de políticos do Brasil republicano. Contracenou com raridades como João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, Juarez Távora, Virgílio de Mello Franco, Eduardo Gomes, Armando de Salles Oliveira, José Américo de Almeida e Affonso Arinos. Nunca mais o Brasil veria tantos homens públicos vocacionais esbanjando talento ao mesmo tempo.
Se o país em que agiram tais personagens lhe pareceu tão árido, o que diria Aranha do que se viu neste primeiro quarto de século? Como reagiria à visão do gigantesco viveiro que empilha juízes fora da lei, governantes larápios, parlamentares vigaristas, fanáticos incuráveis e demais integrantes do grande clube de cafajestes corruptos? Alguém conseguiria explicar-lhe por que gente que escrevia sem erros e falava português corretamente acabou trocada por analfabetos funcionais como Lula ou bestas quadradas como Dilma Rousseff? Aranha não demoraria a constatar que faltam coragem, honradez, vergonha na cara. Sobram canalhas e calhordas. “Os idiotas estão por toda parte”, avisou Nelson Rodrigues em 1969. Já estão nos três Poderes. E também discursam na ONU
Pensei em Aranha naquele setembro de 1985 ao testemunhar no plenário da ONU a performance de José Sarney. O presidente baixou em Nova York escoltado por uma gorda comitiva. Com o plenário quase deserto, a delegação brasileira lotou a fila do gargarejo. Em êxtase com as salvas de palmas dos compatriotas, Sarney transformou a tribuna em palanque e resolveu apresentar ao mundo, no meio da discurseira, o poeta conterrâneo Bandeira Tribuzi. Intrigada com os versos declamados pelo orador, a plateia tratou de aplaudi-los ao descobrir que o autor fora amigo de Sarney na juventude. O deputado mineiro Milton Reis esperou que o chefe voltasse ao palavrório de palanque para, na primeira vírgula, soltar o berro que animava os comícios de antigamente: “Apoiado!”. No dia seguinte, ainda eufórico, o presidente festejou o próprio desempenho passeando por Nova York de limusine branca.
Foi a primeira vez que se viu em Nova York uma limusine assim — muito apreciada por casais do interiorzão do Michigan em lua-de-mel na cidade grande — com um presidente da República a bordo. Presidente do Brasil, naturalmente. A caipirice de luxo chegara ao limite? Não há fronteiras para figurões do País do Carnaval que visitam o umbigo do mundo, descobri no começo dos anos 1990
Igualmente deslumbrados, o presidente Fernando Collor e um bando de ministros pousaram em Nova York para outra etapa da festa pela chegada ao poder. Numa das escalas, o grupo deu pela falta de Zélia Cardoso de Mello. A preocupação se foi quando a ministra da Fazenda surgiu a bordo de uma carruagem alugada nas imediações do Central Park.
Voltei a pensar em Aranha quando chegou a vez de Dilma Rousseff. A presidente que não dizia coisa com coisa desembarcou em Nova York durante uma ofensiva militar americana contra o Estado Islâmico, que aumentava seu acervo de horrores na Síria. Depois de solidarizar-se com a turma das cavernas, a visitante garantiu que até decepadores de cabeças aceitam convites para um diálogo civilizado. “Lamento enormemente os ataques na Síria”, começou o palavrório em dilmês erudito. “Nos últimos tempos, todos os últimos conflitos que se armaram tiveram uma consequência: perda de vidas humanas dos dois lados”. O choro de Dilma depende da nacionalidade do morto. Ela não derramou uma única e escassa lágrima pelas incontáveis vítimas do bando de fanáticos. Não deu um pio sobre a decapitação — em ritos repulsivos filmados pelos carrascos e exibidos na TV — de dois jornalistas e um agente humanitário
A presidente só “lamenta enormemente” a redução do grupo de aliados na guerra irremediavelmente perdida que move desde a juventude contra o imperialismo ianque. O monumento ao cinismo foi implodido por uma nota subscrita por Ban Ki-Moon, secretário-geral da ONU. Além de endossar os bombardeios americanos, Ki-Moon lembrou que os devotos da barbárie só seriam contidos — como foram — por mais operações militares semelhantes às executadas pelos EUA. Dilma se vingaria tempos depois: ao sair de uma conversa com Barack Obama na Casa Branca, jurou que dera alguns conselhos ao anfitrião. Um deles: “Expliquei que a pasta que sai não volta pra dentro do dentifrício”.
O presidente Lula vai ocupar a tribuna outra vez. Entre 2003 e 2010, o brasileiro que vive assassinando o português e não sabe sequer dizer “OK” ou dar “bom dia” em inglês botou na cabeça que era o Pelé da política. Logo seria secretário-geral da ONU (e, antes ou depois disso, embolsaria o Prêmio Nobel da Paz). No terceiro mandato, resolveu falar grosso com o Grande Satã ianque. Acusou Donald Trump de “fascista”, aproximou-se do grupo de nações tutelado pela China, apoiou a invasão da Ucrânia por tropas russas, quis engordar o Brics com ditaduras amigas, defendeu o Hamas e o Irã, hostilizou Israel e propôs a criação de uma moeda que aposentasse o dólar.
Agora atordoado pela mudança dos ventos determinada por Trump, tenta um improvável acerto com o presidente americano. Mas o único presidente analfabeto da história do Brasil nunca falha: vai dizer bobagens de novo.
O país que pensa e presta não merece ver um Lula na tribuna que eternizou Osvaldo Aranha. Nem um corrupto juramentado na presidência da República.
Revista Oeste