O Brasil só voltará à normalidade quando o Supremo voltar a respeitar a lei
A té este primeiro quarto do século 21, o Brasil acreditava ter conhecido todas as formas de governo, tanto as já testadas no resto do mundo quanto bizarras invenções nativas. Desde o Descobrimento, houve um pouco de tudo. Os primeiros no comando foram os donos de capitanias hereditárias natimortas. Depois vieram o governador-geral único, a dupla de governadoresgerais (um mandava no Sul, outro no Norte) e o vice-rei. Com a chegada da corte portuguesa, a colônia virou reino e a demência da rainha Maria I, a Louca transferiu o poder absoluto para o príncipe regente João VI. A proclamação da Independência resultou na adoção do regime monárquico, mas D. Pedro I não demorou a distanciar-se do Brasil para garantir a uma filha o trono de Portugal. Deixou para trás um problema de bom tamanho: aos 5 anos, seu sucessor teria de esperar mais 13 para alcançar a maioridade exigida pela tradição.
Os grandes do reino resolveram aguardar a passagem do tempo com um regente no comando. Sob a alegação de que o padre Feijó, ocupante do cargo, andava espaçoso demais, trocaram a regência una pela regência trina. Como também essa ideia não funcionou, a maioridade do sucessor foi antecipada e D. Pedro II virou imperador aos 14 anos. Conteve as frequentes revoltas regionais, venceu a Guerra do Paraguai e envelhecia em sossego quando um general monarquista, Deodoro da Fonseca, resolveu proclamar a República. O imperador seria trocado por presidentes escolhidos pela maioria do eleitorado ou beneficiados por fraudes descaradas nas décadas seguintes com ditadores civis, juntas militares, generais ungidos pela cúpula das Forças Armadas e, depois da Constituição de 1988, candidatos vitoriosos nas urnas.
Em matéria de forma de governo, já não falta mais nada, suspiraram milhões de brasileiros cansados de experimentos de risco. Erraram: faltava alojar no Palácio da Alvorada um homem que nunca leu um livro e não sabe escrever, e em seguida a mulher que, em cinco anos e meio, não conseguiu dizer coisa com coisa. Não é pouco. Mas parece quase nada diante da mais bizarra e desastrosa forma de governo já testada nestas paragens: a ditadura do Judiciário. Entrincheirado no Supremo Tribunal Federal, o alto comando reúne bacharéis em Direito indicados por chefes do Executivo com o aval do Legislativo. Divididos em duas categorias — os incapazes e os capazes de tudo —, transformam-se em Superjuízes quando se cobrem de negro. O decano Gilmar Mendes é o técnico do Timão da Toga. O artilheiro é Alexandre de Moraes, que age de acordo com códigos legais só existentes na própria cabeça e sonha com a transformação do país num imenso xilindró.
“Dirijo uma Vara Criminal que cuida de dois mil casos”, gabou-se Mores num palavrório para plateias amestradas. Nessa multidão de réus e indiciados, não há um único devoto de Lula, tampouco qualquer espécie de esquerdista. Só mentem, pecam e agridem alguma lei imaginária os que insistem em duvidar das acusações feitas pelo ministro a Jair Bolsonaro. O ministro faz o sinal da cruz quando pensa no seu Satã preferido. Como deixar de punir com 27 anos de cadeia um genocida, fascista, golpista, afanador de joias e assediador de baleias, fora o resto? Como não enxergar um facínora em quem ousa manifestar-se nas ruas em favor da anistia? Ninguém sabe com exatidão quantos inquéritos Moraes administra. Mas há celas e tornozeleiras eletrônicas suficientes para confiscar o direito de ir e vir até da moça do batom, do mendigo autista e de septuagenárias armadas de rosários.
O Supremo costumava ser comparado a um arquipélago formado por 11 ilhas sem qualquer comunicação entre si. Um exagero, claro. Mas o começo das transmissões da TV Justiça confirmou que as sessões no plenário não tinham parentesco com os debates na Câmara dos Lordes. As decisões eram precedidas por debates que muitas vezes desandavam em bate-bocas nada condizentes com o tratamento cerimonioso. Os insultos destoavam dos protocolares “Vossa Excelência” ou do “Eminente Colega” que abriam a frase ofensiva. Em 2012, por exemplo, no epílogo do julgamento do Mensalão, Joaquim Barbosa recomendou ao “eminente ministro” Gilmar Mendes que não o tratasse “como se estivesse falando com um dos seus capangas em Mato Grosso”. O atual decano do STF, aliás, é um brigão vocacional. Irritado com um voto divergente de Nunes Marques, repetiu numerosas vezes a frase “não haverá salvação para o juiz covarde”.
Esse temperamento beligerante o expõe a réplicas especialmente rudes. Uma delas, produzida por Luís Roberto Barroso em 2018, ainda faz sucesso nas redes sociais: “Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível. Uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. Qual é sua ideia? Qual é sua proposta? Nenhuma! É bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto, uma coisa horrível. Vossa Excelência nos envergonha, Vossa Excelência é uma desonra para o tribunal, uma desonra para todos nós. Um temperamento agressivo, grosseiro, rude. É péssimo isso. Vossa Excelência desmoraliza o Tribunal. É muito penoso para todos nós termos que conviver com Vossa Excelência aqui. Não tem ideia, não tem patriotismo, está sempre atrás de algum interesse que não o da Justiça. Uma vergonha, um constrangimento.” Se é que houve, a TV Justiça não divulgou o contragolpe de Gilmar.
Em 2023, durante a sessão de posse de Barroso na presidência do STF, afagos verbais recíprocos avisaram que os antagonistas de 2018 se tornaram bons amigos. “O destino não poderia ter sido mais generoso com a nossa República”, começou Gilmar. “A posse de Vossa Excelência na presidência desta Suprema Corte representa galardão que coroa uma carreira jurídica de excelência”. Barroso mandou às favas as pitadas de psicopatia: “Agradeço honrado sua bela oração em nome da Corte e as palavras generosas a mim dirigidas que guardarei no coração”. A maioria do STF é contrária a qualquer tipo de anistia — para os inimigos externos. Entre os integrantes da Corte, sobra compaixão. É preciso juntar as ilhas para fortalecer a ditadura do Judiciário.
Cármen Lúcia ganhou a simpatia da bancada hegemônica graças a uma conversão tão radical quanto à vivida por São Paulo Apóstolo na estrada de Damasco. A mulher que recitou “Cala a boca já morreu” passou a defender a censura com prazo de validade e agora quer amordaçar plataformas. “É preciso impedir que 213 milhões de pequenos tiranos soberanos dominem os espaços digitais no Brasil”, delirou, reduzindo a pequenos tiranos todos os habitantes do país. “Eu cooptei a Cármen Lúcia”, jactou-se Gilmar Mendes num jantar em Cuiabá. Depois de nomear-se filha adotiva do decano, Cármen conversa diariamente com ele. Sem testemunhas por perto.
Antes da conversão, ouvi a então presidente do STF jurando ao juiz Sérgio Moro, num evento em São Paulo, que nem colocaria em votação a lei que autorizava o começo do cumprimento da pena depois da condenação em segunda instância. Fez mais que esquecer a promessa: votou a favor da mudança defendida por Gilmar. Agora, alguém só é considerado culpado depois de recusado o último recurso apresentado à última instância. Foi graças a essa esperteza que Lula saiu da cadeia onde descansava havia 500 dias. Para seguir expandindo os poderes do Judiciário, os conspiradores togados precisavam de um candidato com chances de impedir a reeleição de Bolsonaro. Precisavam de um Lula.
Autor do histórico voto que implodiu o monumento à fantasia, Luis Fux sangrou a árvore envenenada plantada em 14 de março de 2019, logo no início do governo Bolsonaro. Naquele dia, o então presidente do STF, Dias Toffoli, abriu de ofício — sem ter sido provocado pelo Ministério Público, a polícia ou qualquer parte interessada — o Inquérito nº 4781, ou Inquérito das Fake News, apelidado de Inquérito do Fim do Mundo pelo ministro aposentado Marco Aurélio Mello.
Também à revelia das normas do tribunal, que determinam tais escolhas por sorteio, Toffoli entregou a Alexandre de Moraes o cargo de relator do inquérito instaurado “com o objetivo de investigar a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas e ameaças contra a Corte, seus ministros e familiares”. Menos de um mês depois, em 11 de abril de 2019, a revista Crusoé publicou trechos do depoimento em que Marcelo Odebrecht, delator da Operação Lava Jato, revelava o codinome utilizado para se referir a Dias Toffoli dentro da empreiteira: “o amigo do amigo de meu pai”. Três dias depois, Alexandre de Moraes ordenou que os sites da Crusoé e do Antagonista — que também havia divulgado a descoberta — eliminassem o material publicado, para livrar-se da multa diária de R$ 100 mil. A repercussão negativa provocou o recuo dos censores togados. Mas a contraofensiva não demorou.
Em 29 de abril de 2020, o relator Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal, sob a alegação de que Bolsonaro pretendia usar uma instituição que não é um órgão de inteligência do governo para obter informações de maneira ilegal. O presidente errou ao piscar primeiro. Moraes avançou sem resistências sólidas até o surgimento da Vaza Toga. Há algumas semanas, o antigo subordinado Eduardo Tagliaferro vem divulgando provas dos métodos criminosos usados pelo ministro e um juiz auxiliar para forjar provas que incriminem inocentes. O feroz inquisidor evita comentar o caso e continua à caça de motivos para punir a testemunha que vem resgatando a verdade. É ele quem precisa de álibi.
Em 2024, quando comandou o TSE, Cármen Lúcia compreendeu que seria impossível repetir o desempenho do antecessor nos mais de 5,5 mil municípios brasileiros. Em 2022, Moraes batera o recorde brasileiro de abuso de poder com as ações ilegais concebidas para inibir, constranger, intimidar ou punir veículos de comunicação, jornalistas, candidatos e empresários que não se dobravam a avisos e ameaças. O STF e o TSE agiram como partidos políticos e influenciaram fortemente os resultados da disputa. Como reprisar tais crimes nos milhares de municípios brasileiros? Melhor deixar por conta dos juízes das cidades as questões eleitorais. Resultado: a apuração dos votos consumou-se em clima de tranquilidade, foram eleitos os mais votados, que tomariam posse sem sobressaltos. A mudança para melhor deveu-se ao retraimento dos dois tribunais que haviam tumultuado as eleições anteriores. Basta esse exemplo para identificar os responsáveis pela insegurança jurídica e política que atormentam o Brasil. O país só voltará à normalidade quando o Supremo reaprender a respeitar a lei. A crise veste toga.
Augusto Nunes e Eliziário Goulart Rocha - Revista Oeste